Coitadinhos
Achei piada quando alguém me disse (sei lá quem! Já tantos mo disseram!) que "deve ser giro trabalhar com loucos".
Atendê-los, ouvi-los queixar-se do tempo, do preço, da memória que falha, de não saber porque os levaram para aquele lugar estranho. Isto nos dias bons, nesses em que ainda falam, em que fitam menos o branco cálido da parede que os gela e agita.
Alguém me disse (não sei bem quem, não sei bem quando) que deve ser complicado "lidar com pessoas assim", e olhando-me como quem espera uma queixa, uma coscuvilhice qualquer, sorri desiludido com o silêncio dos meus lábios. Mudos e selados de estupefacção. E tal como essas "pessoas assim", o seu olhar perdido espera um alento, o seu rosto rompe em manchas de tempos que queria esquecer. Ao fundo, no lugar escuro que suplicamos para nunca mais ver, esse ente geme aflito nas mãos sórdidas que o seguram. Hoje só espera uma estória hilariante da qual se possa rir (e é com a desgraça dos outros que mais nos divertimos), gargalhadas soltas para afagar as mágoas que não passam. E eu, com ares de arrogante, passados cinco minutos, respondo que sim, que me aparece com cada um, e convenço-me de que o digo só para seu contentamento. Um alívio imenso espraia-se em mim com as mil perguntas emanadas do seu olhar radiante. As questões são subterfúgios a que simplesmente sorrio, porque nada mais tenho a dizer, enquanto acalmo a consciência com as mentiras que uso para me desculpar. Sorrio e pouco penso, já tão distante estou. Estou noutro espaço paralelo em que as memórias assaltam a mente... O choro da paciente que o ruído do ar condicionado não consegue abafar; a esperança que a senhora alta de cabelo preto muito longo deposita em mim no seu "só quero ser normal, voltar a ser feliz"; a lentidão com que a estrangeira assina o cheque, e anda, e sorri, e se despede com um "feliz ano nuovo, Ana", sempre muito devagar e quase em surdina. São loucas, são, e nós tão sãos, tão cheios de vida, tão iluminados e complacentes repetindo "coitadinhas"...
A criança autista, coitadinha, o velhote com stress pós-traumático e amor de mãe tatuado no braço de pele já mole e músculo firme, coitadinho, a bipolar de vinte anos com os braços queimados e olhar vazio, coitadinha, a velhota que grita e já não sabe onde fica a casa de banho (o que é casa de banho?), coitadinha, o depressivo crónico que se apaixonou pela bipolar e o risco de suicídio (que afinal deve ser punido porque não se pode atentar contra a própria vida, fim em si mesmo, e Deus Nosso Senhor não perdoa e tem desígnios insondáveis AMEN), coitadinhos, a esquizofrénica que acha que sou a filha que lhe morreu, coitadinha...
Coitadinhos porque são tontinhos, ai coitadinhos!, e vêm ao médico dos doidos, coitadinhos, porque estão senis, os pobrezinhos! E tu, como eu, tremendo num sorriso de dentes rangendo, julgando-nos amplos em conhecimento, tão lúcidos e sãos e inteligentes, e nós tão seguros de nós próprios e cientes da vida!
A velha que anda de um lado para o outro, e não sabe o que é uma sanita e se mija perna abaixo chamando-me sem perceber que eu não sou a sua irmã Matilde, pára subitamente. Entrando-me olhos dentro declara, com um rasgo de clarividência surpreendente (como pode uma louca perceber tão bem a vida, coitadinha?), "eu sei que estou demente mas ainda não sou estúpida, e tu pensas que sabes mais que eu, mas é mentira. Eu salto deste mundo para aquele que não imaginas, que não existe. Eu posso voltar e então sentir-me livre. Tu nem saberás o que é a Liberdade. Não a sentir...não dar valor à vida...essa sim é a verdadeira Loucura".
Atendê-los, ouvi-los queixar-se do tempo, do preço, da memória que falha, de não saber porque os levaram para aquele lugar estranho. Isto nos dias bons, nesses em que ainda falam, em que fitam menos o branco cálido da parede que os gela e agita.
Alguém me disse (não sei bem quem, não sei bem quando) que deve ser complicado "lidar com pessoas assim", e olhando-me como quem espera uma queixa, uma coscuvilhice qualquer, sorri desiludido com o silêncio dos meus lábios. Mudos e selados de estupefacção. E tal como essas "pessoas assim", o seu olhar perdido espera um alento, o seu rosto rompe em manchas de tempos que queria esquecer. Ao fundo, no lugar escuro que suplicamos para nunca mais ver, esse ente geme aflito nas mãos sórdidas que o seguram. Hoje só espera uma estória hilariante da qual se possa rir (e é com a desgraça dos outros que mais nos divertimos), gargalhadas soltas para afagar as mágoas que não passam. E eu, com ares de arrogante, passados cinco minutos, respondo que sim, que me aparece com cada um, e convenço-me de que o digo só para seu contentamento. Um alívio imenso espraia-se em mim com as mil perguntas emanadas do seu olhar radiante. As questões são subterfúgios a que simplesmente sorrio, porque nada mais tenho a dizer, enquanto acalmo a consciência com as mentiras que uso para me desculpar. Sorrio e pouco penso, já tão distante estou. Estou noutro espaço paralelo em que as memórias assaltam a mente... O choro da paciente que o ruído do ar condicionado não consegue abafar; a esperança que a senhora alta de cabelo preto muito longo deposita em mim no seu "só quero ser normal, voltar a ser feliz"; a lentidão com que a estrangeira assina o cheque, e anda, e sorri, e se despede com um "feliz ano nuovo, Ana", sempre muito devagar e quase em surdina. São loucas, são, e nós tão sãos, tão cheios de vida, tão iluminados e complacentes repetindo "coitadinhas"...
A criança autista, coitadinha, o velhote com stress pós-traumático e amor de mãe tatuado no braço de pele já mole e músculo firme, coitadinho, a bipolar de vinte anos com os braços queimados e olhar vazio, coitadinha, a velhota que grita e já não sabe onde fica a casa de banho (o que é casa de banho?), coitadinha, o depressivo crónico que se apaixonou pela bipolar e o risco de suicídio (que afinal deve ser punido porque não se pode atentar contra a própria vida, fim em si mesmo, e Deus Nosso Senhor não perdoa e tem desígnios insondáveis AMEN), coitadinhos, a esquizofrénica que acha que sou a filha que lhe morreu, coitadinha...
Coitadinhos porque são tontinhos, ai coitadinhos!, e vêm ao médico dos doidos, coitadinhos, porque estão senis, os pobrezinhos! E tu, como eu, tremendo num sorriso de dentes rangendo, julgando-nos amplos em conhecimento, tão lúcidos e sãos e inteligentes, e nós tão seguros de nós próprios e cientes da vida!
A velha que anda de um lado para o outro, e não sabe o que é uma sanita e se mija perna abaixo chamando-me sem perceber que eu não sou a sua irmã Matilde, pára subitamente. Entrando-me olhos dentro declara, com um rasgo de clarividência surpreendente (como pode uma louca perceber tão bem a vida, coitadinha?), "eu sei que estou demente mas ainda não sou estúpida, e tu pensas que sabes mais que eu, mas é mentira. Eu salto deste mundo para aquele que não imaginas, que não existe. Eu posso voltar e então sentir-me livre. Tu nem saberás o que é a Liberdade. Não a sentir...não dar valor à vida...essa sim é a verdadeira Loucura".
4 Comments:
O mesmo L de Loucura, para a Liberdade infinita de gozar/viver/regozijar outros mundos, livremente (cá está) criados por nós, por eles...paralelos ao visível tão normalmente entediante, tão inelutavelmente branco, preto ou cinzento...loucos são os que não descobriram a magia do cromático, a fantasia de não saber o que são dados adquiridos pela civilização...loucos são os incapazes de transportarem o irreal para a palpável normalidade dos dias...São loucos os que no choro encontram o grito da libertação ou o riso do desejo incontido...Para nós são loucos...Porquê? Porque incomodam e há que escondê-los em cárceres brancos tresloucados da sua brancura estupidifcante...Enfim...Coitados de nós...
Ah! Esqueci-me de dizer à tua sã loucura que continue a investir em si própria e nos projectos que ela arranja para se salvar de si própria (sabemos ambas que assim é)...porque, assim, dará ao mundo o melhor de ti...que fica para além dela, de ti, da morte.
"Loucura? - Mas afinal o que vem a ser a loucura?... Um enigma... Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção:isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo... Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa d emaneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria... são doidos...
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Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o género da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser os ajuizados: Na terra dos cegos, quem tem um olho é rei, diz o adágio: na terra dos doidos, quem tem juízo, é doido, concluo eu"
in "Loucura..." de Mário de Sá-Carneiro
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