Monday, January 29, 2007

Entrar

Ouvi-te chegar, por entre a chuva, numa tarde de Outono. Ouvi os teus passos, arrastados pela fadiga de mais um dia que não pediste, ecoarem no silêncio. Vi-te. nos momentos desta sombria mansidão. Vi-te num gesto claro pousar as mãos sobre a mesa do hall...o cigarro libertando o fumo encarcerado na podridão tua. Senti o asco do teu riso mecânico, sempre fingido, cuspido em recantos oblíquos com que constróis os dias. porque os odeias, como aos “filhos da puta desses chupistas” que te roubam todos os meses, “que é sempre o peixe miúdo que fica a arder, só o peixe miúdo”. porque todos te tiraram a liberdade cedo demais, e “isto só vai lá com mão de ferro”, e rezas aos teus deuses dionisíacos para que te devolvam a vida divina que perdeste nos sonhos. todos os dias...
Revi, nesse momento, as lágrimas que por capricho te obrigaste a guardar para a escuridão (porque homem que é homem nunca chora). Senti, ao longe, o ranger da porta do quarto. Escutei o miar do gato por entre as fissuras do véu que envolve a minha incerta alcova de criança em mulher adormecida, mas nem o senti contra as minhas pernas calejadas, arranhando a carne que comia, tal como tu.
Pensei, contudo, sentir-te entrar pela porta traseira... um ramo de flores na mão, um sorriso nos lábios... Uma gargalhada seca irrompeu o vácuo do quarto entregue à penumbra de cinzas latentes. e surpreendida calei o grito estridente que descobri vir ousadamente de mim. E se estivesses ali e não te visse? Ri, irónica, desgastada, nula. Uma mera utopia, concluí... Ou alívio. Olhares indefiníveis intimidaram-me de novo. Como todos os dias.
Pensei na dobra da pasta de dentes no lavatório, no quarto de maçã sobre o prato cristalino cintilando ao luar, no esboço alegre que timidamente se formava no canto da tua boca... Um gélido calafrio percorreu-me o corpo de encontro ao sangue que escorria. E na descompressão da ansiedade em flecha, mas apática, imóvel, aos poucos adormeci...

Acordei, estremunhada com passos que julguei serem os teus.
Ao longe, no cruzamento de uma nova duna, sei que ainda sorris sobre o mar que de nós se afasta... Temos dezoito anos e fazemos planos para ultrapassar a meia idade...Via-te bem cuidado, levando os nossos filhos à escola...
Desperto para as sombras do quarto e encontro os sapatos de domingo jazendo empoeirados no chão. Uma caneca de cerveja e uma lista de supermercado que nunca chegaste a levar.
Abraçando o ventre, tento apartar de si uma década de submissão e sofrimento... Em vão, bem sei. Distante, vislumbro um traço teu naquele rosto angelical, e já nem sei se o quero lá. porque é pouco o que de ti hoje se tira, é muito pouco...O filho é meu, só meu. Era isso que queria dizer ao homem que entrasse pela porta, com o cinto segurando, ridiculamente, uma barriga de cerveja. Era isso que atiraria à tua cara em contas de luz e telefone que não pagas. Era tudo o que diria se a idade não me pesasse mais no ventre que o filho que carrego. Um filho meu. Um filho que balança na indefinição da vivência, esvaindo-se em sangue sobre lençóis de linho pálido...
Uma vaga lembrança tua morre no fluido que em mim se esgota, com o meu filho na sua correnteza...
Caio no chão, vazia, entre memórias que atropelam consciências. No rastro de um mar azul, na duna que me concedeste despejei meus poros de vida em tuas mãos... Prisão que, ainda agora, escolho. Já pálida, moribunda, submissa, mesquinha...
O dia espreguiça-se, ao meu redor, entre janelas que se abrem implacavelmente, sem pestanejar. Embranquecida e sugada devoro as imagens deixadas com as lágrimas em tempos idos...
Ainda ouço um ruído lá fora... Será que agora vais entrar?

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