Thursday, March 27, 2008

Manipulações

O quarto era demasiado pequeno. Pelo menos assim lhe parecia. Parecia estar tão perto, tão excessivamente próximo que quase lhe sentia o suor. Era inevitável a vontade de lhe tocar, a ponta da língua em seu pescoço, descendo cada vez mais espessa até envolver em centrifugação o mamilo… A braguilha das suas calças começou a remexer-se sozinha, um burburinho de movimentos ascendentes. Era melhor virar a cara, fingir que nada acontecera ali em baixo, bem no centro de si mesmo. Tinha esperança que ela não notasse… Em vão, bem sabia, aquele sorriso mudo triunfante já lhe inundava o rosto. Fitava-o tão seguramente, tão intensamente, tão ardentemente… Mais uma vez ela vencera. O corpo não sabia respeitar o que a consciência lhe ordenava. Aquela ausência tão presente, aquela força de vulcão, aquele olhar que o queimava em fantasias, mais uma vez destroçaram toda a sua retórica, sempre vã.
Tentou, entre a raiva e o desejo, perceber porque voltara, o que ainda o prendia aquela história sem princípio ou fim, aquele exíguo espaço doentio em que não havia um único vestígio de humanidade: nem sentimento, nem lágrima, nem cama desfeita, nem excremento, nada. O tempo perdia na sua mente a ordem sequencial… Quando ali entrara pela primeira vez, como lá fora parar, o que aconteceu primeiro, que discussão veio depois, quando adormecera, quando voltara a entrar para agora lá estar…não sabia responder. Voltava sempre. O sufoco desse eterno retorno atordoava-o, mas não sabia o que houvera antes e desesperava-o pensar que haveria um depois, mantê-lo era a solução.
Face à incompreensão de si mesmo convenceu-se de que voltou por ser boa pessoa, por não lhe desejar mal, por querer resolver tudo a bem, por não querer fazê-la sofrer (que a sua existência era claramente o mais fulcral na vida dela!). Este discurso de pacificação interior parecia-lhe lógico e acabou por resultar. Com o rosto complacente de calmo conhecedor de todos os meandros das almas, especialmente da dela (que obviamente o amou como nunca antes tinha amado e que por isso a sua ausência era uma dor lancinante que a desesperava), confiando que a sua decisão, iluminada e sapiente, seria a mais sensata. Perguntou-lhe finalmente como estás? E ela respondeu que bem, entre ironias e pernas lentamente cruzadas, para depois gritar que era cruel o que lhe fazia e culminar num choro compulsivo e num estalo a cada benevolente aproximação de consolo. Tudo terminou com um não te quero ver mais na vida, nunca ninguém me magoou tanto como tu, quem eu mais amei! Aterrado por este breve encontro que lhe pareceu durar toda a eternidade, ficou prostrado entre a vontade de a seguir, merda merda merda, perdoa-me!, e a indefinição de pensamentos, o que é que eu fiz desta vez? Não fosse o diabo tecê-las resolveu segui-la (que se ela se fosse embora de vez era uma chatice), desculpar-se, dizer que nunca ninguém o marcara como ela, e de repente já os lábios se entrelaçam, e as mãos deslizam, e as roupas voam caindo abruptamente no chão, e contra a parede os corpos se encostam e rodopiam em gemidos e gritos de nomes, e as unhas dela cravam-lhe as costas até o sangue escorrer num brado lancinante, misto de dor e prazer. No fim o cigarro na boca dele. Nela o olhar de felina, o fim do sorriso e a súbita declaração destrutiva: aproveitaste-te de mim.
Uma espécie de vertigem, o sangue desce gélidos pés e sobe em flecha contra a face rúbea, fi-lo? A dúvida. Forçara-a? Aproveitara-se da sua fraqueza? Magoara-a? Ela não o queria? Nunca mais a voltaria a ver? Não, não, não, desculpa, eu amo-te, perdoa-me! E (quão inesperado!) ela vira as costas, num suspiro de vazia dor, e caminha a passos firmes pelo corredor, o corpo balançando, os saltos estilhaçando o chão, o olhar dele fixo naquele corpo, naquele cabelo esvoaçante, naquele pedaço de céu e de inferno que lhe ficara entranhado na pele. O que fazer agora? Como a recuperar? O que fora verdade? Onde errara? Será que ela volta?
De volta ao quarto sem mobília, sem janelas, sem emoções, encosta-se a uma parede, tenta chorar, quase consegue, o cigarro queima-lhe o braço, enegrece-lhe os pulmões, incendeia-lhe a epiderme de novo. Mais vale ficar no quarto, que pode ser que ela volte, que pelo menos aqui ela vive em toda a parte, ri, respira, arfa em todo o lado, C02 é-la aqui, no quarto vazio da sua não-relação.

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