O Mundo de Sofia revisited
Sofia dizia que sim. Claro que o vaso ficava bem ali, e acolá também. E aqui, querida, o que achas? Olhando de soslaio, respondia que estava bem, desinteressadamente. Não pareces gostar muito... gosto pois! e um sorriso forçado.
A vida de Sofia resumia-se a sim's ocasionais. Sim aos cereais ao pequeno-almoço, sim ao mendigo na rua, sim à ajudinha do arrumador de carros, sim ao eurozinho que lhe pede, sim ao favorzinho que a colega suplica, que estes miúdos só apanham viroses nas escolas! Pela hora do almoço já o barómetro escaldante dos sim quase rebenta, e ao jantar explode com as horas extra no consultório, com a gorjeta dada ao rapaz do café ao lanche, com os cêntimos à vendedora do Borda d'Água, com o com certeza ao porteiro do prédio, com o com todo o gosto à vizinha doente que lhe pede mais uma receitazinha, com o está bem ao filho que vai chegar mais tarde, com o o que queiras ao prato favorito do marido. Ao jantar Sofia fica calada. A boca do marido gesticula incessantemente, todo o tempo. Abre e fecha. Abre e fecha. Não se cansa? - pergunta-se. Nunca se cansa de falar, de ver o futebol, de criticar o Marcelo, de barafustar com os fascistas que criaram esta lei discriminatória do fumador, de palitar os dentes na casa de banho, de se deitar à meia noite, depois de um dia de trabalho, ainda com vontade de uma quecazinha. Há anos que não fazem amor. Esse evaporou-se com os gritos, o crescimento dos filhos, as ausências, os pedidos a mais, os carinhos a menos, as traições mal escondidas, a indiferença.
Fingir um orgasmo, o marido nem perceber. Dizer que se ama só porque sim, porque não se quer discutir, porque amar ou odiar agora é quase a mesma coisa, é sentimento a mais para o vazio que se sente. Sofia queria gritar-lhe que não lhe dá prazer em coisa alguma, mas não pode. Há dias em que se torna frígida. Ele exaspera-se, não entende porquê, procura uma puta fina qualquer, uma amiga, demora mais tempo a chegar a casa por causa de uma reunião urgente no escritório. Sofia finge que acredita. Faz parte do acordo de qualquer matrimónio. "Amar e respeitar até que a morte os separe", máscara para a realidade de um aguentar e aturar até que o tempo de se afastarem chegue. Ás vezes não chega. Os filhos vão embora, mas a velhice vem, e ninguém quer morrer sozinho... Por isso se atura até a bebedeira e o assédio do amigo, até a saia curta da empregada e as cuecas rendilhadas encontradas no bolso do casaco (que cenário tão deprimentemente kitsch), até os burriés vasculhados com o indicador no nariz, até o atraso no pagamento das contas e o vício do cigarro que empesta a casa.
O marido ainda sobre si. Parece que nunca mais acaba. Sofia diz que sim que está a gostar, oh sim! sim!, Sofia ama-o, ó quanto! Sofia diz que sim, que quer. Mas Sofia diz também que sim ao director de serviço, quando o desespero já é muito. A graçola fácil depois do acto, você devia ser boa a anatomia! Sofia sorri enquanto abotoa a camisa, pensando em que ano da primária o cérebro daquele idiota estagnara. Os olhares das enfermeiras comendo-a viva e o desprezo das colegas beatas e púdicas quando regressa ao corredor. Subitamente tudo lhe parece mais escuro e sufocante. Um pouco de ar fresco, só um pouco de ar fresco, e poder, e conseguir, finalmente chorar.
Sofia abana a cabeça, não quer mais pensar. Dormir, agora que ele já teve a sua ejaculação, finalmente dormir, virar-se na cama, boa noite, e poder ficar sozinha. Talvez hoje as insónias sejam menores, talvez durma...Na certeza de que amanhã é outro dia. Mas hoje, só por hoje, pode ficar novamente sozinha, consigo mesma, sem vozes estridentes ecoando, sem camisas para passar a ferro, sem loiça para lavar. Amanhã é outro dia, e talvez o sol brilhe mais tarde, deixando-a ser feliz, só mais um bocadinho.
A vida de Sofia resumia-se a sim's ocasionais. Sim aos cereais ao pequeno-almoço, sim ao mendigo na rua, sim à ajudinha do arrumador de carros, sim ao eurozinho que lhe pede, sim ao favorzinho que a colega suplica, que estes miúdos só apanham viroses nas escolas! Pela hora do almoço já o barómetro escaldante dos sim quase rebenta, e ao jantar explode com as horas extra no consultório, com a gorjeta dada ao rapaz do café ao lanche, com os cêntimos à vendedora do Borda d'Água, com o com certeza ao porteiro do prédio, com o com todo o gosto à vizinha doente que lhe pede mais uma receitazinha, com o está bem ao filho que vai chegar mais tarde, com o o que queiras ao prato favorito do marido. Ao jantar Sofia fica calada. A boca do marido gesticula incessantemente, todo o tempo. Abre e fecha. Abre e fecha. Não se cansa? - pergunta-se. Nunca se cansa de falar, de ver o futebol, de criticar o Marcelo, de barafustar com os fascistas que criaram esta lei discriminatória do fumador, de palitar os dentes na casa de banho, de se deitar à meia noite, depois de um dia de trabalho, ainda com vontade de uma quecazinha. Há anos que não fazem amor. Esse evaporou-se com os gritos, o crescimento dos filhos, as ausências, os pedidos a mais, os carinhos a menos, as traições mal escondidas, a indiferença.
Fingir um orgasmo, o marido nem perceber. Dizer que se ama só porque sim, porque não se quer discutir, porque amar ou odiar agora é quase a mesma coisa, é sentimento a mais para o vazio que se sente. Sofia queria gritar-lhe que não lhe dá prazer em coisa alguma, mas não pode. Há dias em que se torna frígida. Ele exaspera-se, não entende porquê, procura uma puta fina qualquer, uma amiga, demora mais tempo a chegar a casa por causa de uma reunião urgente no escritório. Sofia finge que acredita. Faz parte do acordo de qualquer matrimónio. "Amar e respeitar até que a morte os separe", máscara para a realidade de um aguentar e aturar até que o tempo de se afastarem chegue. Ás vezes não chega. Os filhos vão embora, mas a velhice vem, e ninguém quer morrer sozinho... Por isso se atura até a bebedeira e o assédio do amigo, até a saia curta da empregada e as cuecas rendilhadas encontradas no bolso do casaco (que cenário tão deprimentemente kitsch), até os burriés vasculhados com o indicador no nariz, até o atraso no pagamento das contas e o vício do cigarro que empesta a casa.
O marido ainda sobre si. Parece que nunca mais acaba. Sofia diz que sim que está a gostar, oh sim! sim!, Sofia ama-o, ó quanto! Sofia diz que sim, que quer. Mas Sofia diz também que sim ao director de serviço, quando o desespero já é muito. A graçola fácil depois do acto, você devia ser boa a anatomia! Sofia sorri enquanto abotoa a camisa, pensando em que ano da primária o cérebro daquele idiota estagnara. Os olhares das enfermeiras comendo-a viva e o desprezo das colegas beatas e púdicas quando regressa ao corredor. Subitamente tudo lhe parece mais escuro e sufocante. Um pouco de ar fresco, só um pouco de ar fresco, e poder, e conseguir, finalmente chorar.
Sofia abana a cabeça, não quer mais pensar. Dormir, agora que ele já teve a sua ejaculação, finalmente dormir, virar-se na cama, boa noite, e poder ficar sozinha. Talvez hoje as insónias sejam menores, talvez durma...Na certeza de que amanhã é outro dia. Mas hoje, só por hoje, pode ficar novamente sozinha, consigo mesma, sem vozes estridentes ecoando, sem camisas para passar a ferro, sem loiça para lavar. Amanhã é outro dia, e talvez o sol brilhe mais tarde, deixando-a ser feliz, só mais um bocadinho.
3 Comments:
Fantástica, como sempre...
:'(
O problema desta Sofia é submeter-se aos silêncios como se houvesse um desvio cósmico que obrigasse a um profundo sofrimento. Se Sofia interpelasse um jovem ávido de amor, que desejasse não só a queca (mas também porque até as quecas, por vezes, desanuviam os existencialismos), se é para representar uma peça porque não representar uma em seu proveito? Porque tem que ser um ser humano responsável por tudo o que lhe acontece, quando, certamente, tudo o que lhe aconteceu não lhe era permitido evitar? se a responsabilidade fosse um contrato ético universal como se pretendia: há muito que a humanidade estava sobre a forca.
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