Friday, May 25, 2007

Brindar ao novo dia

Espera-se sempre que a hora mais esperada seja assim, simples, rápida, suave, pouca dor, pouca consciência, pouca amargura. Espera-se sempre que venha tarde, quanto mais tarde melhor, que passe depressa, e que subitamente já não se sinta nada. Tudo findou. Adeus ao sofrimento, à fome, à responsabilidades, adeus pecados que se guardam em segredos (ai se me descobrem, ai se me descobrem!).
Esperavas por isso morrer velha, deitada na tua cama, os lençóis brancos continuariam imaculados, uma alcova construída por ti ao longo de toda a vida para o efeito, tudo perfeito, tudo tão calmo. Os cabelos grisalhos, os olhos cerrados, o sorriso calmo e a respiração aliviada. Subitamente viria aquela inspiração asmática, o peito incharia, um breve gemido, todo o ar sugado do teu corpo enrugado, tez clara, mãos cruzadas sobre a barriga, rosário entre os dedos, a cama de madeira nem estremeceria, um suspiro e deixaras de existir.
Sempre confiaste que nada aconteceria, nem doença, nem acidente, nem crime, só tu e a tua paz de idosa bem vivida, só tu e o silêncio do teu quarto despedindo-se da doce e amena vida. Sempre esperaste esse fim sereno que é o descanso louvável das almas mais temerosas. Sempre esperaste que tudo terminasse bem, como nos filmes, e que depois de morreres não houvesse mais nada, para que assim pudesses ter o teu devido repouso dos justos. Talvez por isso sempre tenhas querido viver tudo no mesmo segundo, as bebidas, os homens, as viagens, as danças, as quecas, as gargalhadas, o dinheiro contado ao fim do mês porque desististe de estudar, porque nunca quiseste trabalhar, mas que te importava? tinhas sempre o dia de amanhã, e um amigo qualquer para te dar a mão. Talvez por isso tenhas sorvido a juventude dos teus 28 anos de vida num ápice, sem saberes o que querias, sem saberes de onde vinhas, para onde ias, ou sequer onde vivias. Filha da rua, filha do vento, abandonando o berço de ouro pelo que achaste ser liberdade. Assim te libertaste das amarras e da saúde. Veio a droga, veio o vício, veio o corpo a degradar-se e o fim da alegria, veio a ressaca, o corpo ardendo que tinhas que acalmar, o dinheiro afinal importava-te por que sem ele não havia vida, essa viscosa que te corria pelas veias. Vieram os dias mais longos, mais escuros, mais dormentes, mais inseguros. Veio a raiva, veio o medo, o desespero. Veio a fome, a prisão, o dinheiro dos gajos que te comiam, as taras dos gajos, as sovas dos gajos, o medo dos gajos, a necessidade da massa dos gajos, a perseguição dos gajos. Veio o crepúsculo e nem o viste, e de repente era já noite e jurarias ser dia, ser sempre dia até à nova ressaca, e vem a nova dose, o novo dia (êxtase quase orgásmico, cabeça para cima, arfar de prazer, alma fora do corpo, alegria, e acabou. O desespero. Queres mais, sempre mais), que acaba depressa demais, cada vez mais fugaz, cada vez mais obsessivo.
Nessa altura deixaste de esperar. A morte era essa noite obscura que te ficava depois da elevação, era essa vida de merda que tinhas, que tiveste, que te findou enquanto esperavas o novo dia, a nova vida, a nova dose que te salvaria...
Encontrei-te, esperando, como sempre, numa casa de banho de bar, de um desses bares/taberna que eram a tua noite. Esperavas o novo dia que te cegou, e morreste nele, para não sentir mais, para que a alma tivesse finalmente o seu lugar, no eterno sono do nada, longe do corpo ferido, pesado, frio, violado. Esperavas, de cabelos muito pretos, olhos semicerrados, pele firme, embora amarelada pelos maus tratos do teu dia. Esperaste, aos vinte e oito anos, muito antes de saberes o que era viver, muito antes de vislumbrares a tua tão sonhada liberdade.

1 Comments:

Blogger Laura said...

adorei...vou copiar e por um bocado no meu blog

4:31 PM  

Post a Comment

<< Home