Friday, May 29, 2009

dualidade incolor

Passava a vida a esquecer-se das coisas. De onde tinha posto as chaves, do que comera ao almoço, do que dissera a quem disse que ela disse, de quem o disse, se o dissera. Ás vezes não sabia distinguir as lembranças que tinha, se eram memórias ou sonhos que julgava realidade. Por vezes pensava que não existia. Estava ali mas não estava, sentia-se longe, sentia-se éterea, sentia-se morta. Muitas vezes tentava explicar, mas não conseguia. É um cruzar de consciente e inconsciente, uma confusão no pensamento, a lógica não coexiste com o real. Mas por vezes isto até lhe dava um certo jeito, ignorar situações embaraçosas, erros, falhas, pensar que talvez fosse onirismo invadindo o real e nada mais.
Marta vivia uma outra vida além da sua. A Marta invejada de tão bem sucedida, a Marta que conhecia sempre mais de metade dos presentes em qualquer espaço, a Marta que de eloquente e brilhantemente inteligente estava sempre em toda a parte, a Marta dos longos cabelos afro loiros, dos lábios desenhados, dos enormes olhos vivos. Marta despertava ódios e fascínios, nunca menos que isso. Sorria ao mundo na alegria de lhe poder ser útil. Sorria ao mundo na liberdade de existir.
A Marta dos outros coexistia com a sua rival dentro de um mesmo aglomerado de tecidos corpóreos, um outro eu Marta que lhe corroía as entranhas em espasmos de surrealidade. Tudo para Marta era a adrenalina do medo, a excitação do terror, a indefinição do detorpado pensamento. Marta sabia que Marta não era real, contudo em si zumbia e zurrava e apertava em sufocos de existência. Marta só desejava ser simples, pensar simples, sentir simples, sonhar simples, não ter em si um outro ser que se confunde, o Diabo que lhe invadira o corpo, abocanhando os orgãos vitais de uma outra alma.
Um dia Marta acordou para um dia diferente. Uma névoa em volta, uma penumbra que parecia não desaparecer. Cinco da tarde e a mesma claridade que ao meio-dia, e às nove da manhã, e depressa descobriria que também às nove da noite. Uma mesma claridade em que o rostos pareciam distorcidos e todos iguais mas indefiníveis, caras saltavam do tecto escorrendo em longos cabelos, e pelos passeios parecia que entre raízes de árvores escorregava numa espécie de lava morna que deslizava. No emprego não viu ninguém, nas ruas toda a gente, gente a mais, claustrofóbico. No emprego não conseguiu ficar, em casa todos os pequenos ruídos demasiado audíveis e tudo com uma mesma cor e tudo parecendo ter vida escondida. Primeiro Marta pensou que ainda estivesse a dormir, que fosse acordar em breve, mas esfregava os olhos e nada mudava, parecia que um novo mundo lhe latejava nas pupilas. Marta gritou por dentro ao fim da tortura da Marta demoniaca. E assustou-se com a ideia de que poderia ter gritado mesmo. Ninguém à volta mas mais que nunca as paredes pareciam que tinham ouvidos. O gato de tão estático parecia ter-se transformado em loiça, e os espelhos em volta não mostravam a sua imagem, parecia que ela fora apagada, que era agora um fantasma, que era agora em vez de duas vidas em conflito uma nulidade. Marta tentou um banho, tentou dormir, meditar, rezar, até chorar, até cortar as pernas em golpes de xisato, até bater com a cabeça na parede e quem sabe desmaiar, e no entanto tudo permanecia igual. Marta desesperava, o pânico, a ausência de vida, a ausência de gente, a distância do mundo, a distância da realidade, e ela existe afinal? e eu existo afinal? eu ainda existo? De repente tudo branco, um esticão no pescoço, um estalido, estremecer, cabeça tomba, e eis que as cores reais regressam...O azul no azul, o verde no verde, a janela no mesmo lugar, o gato move-se de novo, e mia, a sua imagem já no espelho...sem chão abaixo dos pés, com uma corda ao pescoço, com a boca entreaberta, sem vida nos olhos. Aos poucos tudo negro e nunca mais duas Martas. Agora já nenhuma.

1 Comments:

Blogger sombra e luz said...

mas que bem... mas que bem...;)
a marta não jaz morta... pois não?... pelo menos, respira...

quando você escreve assim, eu calo-me...

beijinho
parabens...;)

8:40 AM  

Post a Comment

<< Home