do que se falava
Diziam que parava muito. Parava de falar, parava de comer, parava de dançar, andar, sorrir, chorar. Parava simplesmente a olhar para o nada, fitando um algo que ninguém via, de boca entreaberta, de olhar vazio, como quem espera, como quem se espanta com o que vê, e não quer ver.
Diziam que qualquer guardanapo servia para rabiscar uma ideia, que cada segundo livre era preenchido com escrita enfurecida, parar as gargalhadas entre cafés, pegar num guardanapo, mãos trémulas, uma ânsia de fim, um fatalismo que só em si se vê, o tempo que parece escassear, a caneta movendo-se com muita força, uma raiva, uma adrenalina, mais rápido, mais rápido, mais! Parava. Exausta afastava a caneta. Dobrava o guardanapo muito calmamente, uma relíquia para guardar nas profundezas de si. Inspirava. De novo a conversa, os cigarros, os cafés, olá à miúda que passa pela mesa, e de repente, talvez porque desviar o olhar lembra, um movimento lento, autómato, tira a folha frágil de um guardanapo de café burlesco, queima o papel devagar sobre o cinzeiro e observa essa dança de chamas (que juro que gritavam aflitas) como se só isso existisse no mundo, como se ali ninguém estivesse.
Diziam que parava sempre a olhar para a mesma esquina. Um olhar esgazeado, um prenúncio de dilúvio, a mão levava-la ao peito numa reacção à taquicardia, a boca entreaberta, murmurava qualquer coisa imperceptível, perdia forças, invariavelmente desfalecia.
Dizem que um dia já mais ninguém a viu. Nem no emprego, nem em casa, nem nas ruas, nem frente àquela mesma esquina.
Dizem que o último guardanapo que escreveu foi encontrado e dizia:
"Olhar em volta. Tudo tão diferente e familiar, tudo tão certo e tão vão, tudo tão vazio quando cheio de luz. Tudo. Um nada. Espiar atrás da esquina se por lá passas. Espiar. Pensar que demasiado depressa já outra, objectos descartáveis que te passam pelas mãos, vão e vêm, vão. Há sempre mais, não é? E pessoas, seremos? Espiar a esquina, porque não quero ver, não quero mais saber, não quero mais que saibas. Espiar a esquina na esperança de ainda lá encontrar o teu sorriso que já não há. Outros lábios já. Enlouquecer. Um nada tão cheio. Um vazio que arde no peito, no absinto que lhe corre garganta abaixo, porque não mata?
Ciclos que se abrem e fecham. Ciclos. Tudo volta, tudo fica, em mim nada se esvai, entra e fica marcado mesmo que passado seja. E em ti? Lembras?"
Dizem que um dia já não se via. Não se deixava ver. Não queria ver. Não sei, ninguém sabe. Dizem que o silêncio daquele olhar esgazeado lhe tomou a alma. Dizem que perdeu as forças de vez, uma ambulância, sangue à volta, a mesma esquina. Dizem que viu alguém, esperou que passasse, e depois a abafada explosão, um tiro, sangue jorrando da cabeça. Dizem que jazia ainda de olhos abertos, o mesmo olhar ainda esgazeado que nunca largou aquela esquina... Ainda esperar que alguém passasse, alguém que não sussurrasse que horror! com medo que os mortos ouçam e fugisse em seguida a abanar a cabeça, alguém que entendesse aquela não escolha. Alguém que soubesse quem era aquela esquina. Alguém que ainda lembrasse outros dias em que inabalável a esquina gargalhava a força concentrada do centro do mundo.
Diziam que qualquer guardanapo servia para rabiscar uma ideia, que cada segundo livre era preenchido com escrita enfurecida, parar as gargalhadas entre cafés, pegar num guardanapo, mãos trémulas, uma ânsia de fim, um fatalismo que só em si se vê, o tempo que parece escassear, a caneta movendo-se com muita força, uma raiva, uma adrenalina, mais rápido, mais rápido, mais! Parava. Exausta afastava a caneta. Dobrava o guardanapo muito calmamente, uma relíquia para guardar nas profundezas de si. Inspirava. De novo a conversa, os cigarros, os cafés, olá à miúda que passa pela mesa, e de repente, talvez porque desviar o olhar lembra, um movimento lento, autómato, tira a folha frágil de um guardanapo de café burlesco, queima o papel devagar sobre o cinzeiro e observa essa dança de chamas (que juro que gritavam aflitas) como se só isso existisse no mundo, como se ali ninguém estivesse.
Diziam que parava sempre a olhar para a mesma esquina. Um olhar esgazeado, um prenúncio de dilúvio, a mão levava-la ao peito numa reacção à taquicardia, a boca entreaberta, murmurava qualquer coisa imperceptível, perdia forças, invariavelmente desfalecia.
Dizem que um dia já mais ninguém a viu. Nem no emprego, nem em casa, nem nas ruas, nem frente àquela mesma esquina.
Dizem que o último guardanapo que escreveu foi encontrado e dizia:
"Olhar em volta. Tudo tão diferente e familiar, tudo tão certo e tão vão, tudo tão vazio quando cheio de luz. Tudo. Um nada. Espiar atrás da esquina se por lá passas. Espiar. Pensar que demasiado depressa já outra, objectos descartáveis que te passam pelas mãos, vão e vêm, vão. Há sempre mais, não é? E pessoas, seremos? Espiar a esquina, porque não quero ver, não quero mais saber, não quero mais que saibas. Espiar a esquina na esperança de ainda lá encontrar o teu sorriso que já não há. Outros lábios já. Enlouquecer. Um nada tão cheio. Um vazio que arde no peito, no absinto que lhe corre garganta abaixo, porque não mata?
Ciclos que se abrem e fecham. Ciclos. Tudo volta, tudo fica, em mim nada se esvai, entra e fica marcado mesmo que passado seja. E em ti? Lembras?"
Dizem que um dia já não se via. Não se deixava ver. Não queria ver. Não sei, ninguém sabe. Dizem que o silêncio daquele olhar esgazeado lhe tomou a alma. Dizem que perdeu as forças de vez, uma ambulância, sangue à volta, a mesma esquina. Dizem que viu alguém, esperou que passasse, e depois a abafada explosão, um tiro, sangue jorrando da cabeça. Dizem que jazia ainda de olhos abertos, o mesmo olhar ainda esgazeado que nunca largou aquela esquina... Ainda esperar que alguém passasse, alguém que não sussurrasse que horror! com medo que os mortos ouçam e fugisse em seguida a abanar a cabeça, alguém que entendesse aquela não escolha. Alguém que soubesse quem era aquela esquina. Alguém que ainda lembrasse outros dias em que inabalável a esquina gargalhava a força concentrada do centro do mundo.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home