sem-abrigo
Ter frio. Ter frio de tanta fome que sinto. Julgava que os sentidos não se ligavam assim, a fome levar ao frio, a sede levar à cegueira, a falta levar ao medo. Pensei...será? Pensei "será?" vezes a mais. Pensei de mais. Hoje estou sem estórias para contar. Costumavam sentar-se crianças à minha volta, ávidas de sonhos, não se importando com a chuva, não se importando com o frio, nem mesmo se importando com a fome. Olhava-las bem dentro dos olhos, bem fundo na alma, e lia-lhes as fantasias que assaltam o sono, lia-lhes a vontade de saltar de arco-íris em arco-íris, a textura do algodão doce, a forma frágil de que é feito o onirismo infantil. No tempo dos fantoches, dos carros de marionetas pelas ruas, de palhaços moldando balões, de risos em feiras, de pipocas coloridas. Nos meus tempos de circo. Nos meus tempos de jovem. Nos meus tempos sem frio.
Vasculho qualquer coisa no lixo. Apercebo-me disso porque um pedaço de lata corta-me a ponta do dedo, de outra forma nem me lembraria. É já tão automático ser vagabundo que nem reparo bem no que faço. Encontrei uma manta, meio rota e encardida, insuficiente para afastar o frio polar que se instala em estalagmites de orvalho, mas que terá de servir. Às vezes pergunto-me como seriam os tempos que passava os serões à lareira, em casa da minha avó, nessa época em que os sonhos saltitantes ainda eram meus também. Já não me lembro. E juro que me parece que falo de outra pessoa, um outro gaiato a quem lia os sonhos, a criança que nunca fui.
Encontro um cartão rugoso pelo chão e por momentos quase me sinto feliz. Curiosa a simplicidade da alegria de quem nada tem. Acho que envelheci, acho que foi por isso que aqui vim parar. Acho que as crianças de hoje deixaram de sonhar, saem do ventre materno logo com 15 anos, reguilas e malévolas. Acho que é por isso que secaram as minhas fábulas e contos, que os reis do Oriente por lá ficam e as princesas adormecidas não mais são despertadas. Acho até que é por isso que já sei o que significa sentir os ossos gelar, sentir a pele encarquilhar de frio, sentir o tremor de um medo de fim. Acho que é por isso que não sei mais o que é ter amigos, o que é ter família, o que é uma casa com lareira e risos estridentes de criança. Acho que é por isso que o meu circo partiu para outras bandas. Acho que é por isso que não queriam tantos contadores de estórias. Acho que não queriam velhos, e não tiveram coragem de o dizer. E como censurá-los? Já não há crianças para ouvir os velhos, já não há sonhos que se renovam de geração em geração, ensinamentos que a idade traz e acendem labaredas de curiosidade nas almas naive dos rebentos de uma nova era.
Pego no meu cartão e na minha manta, encontro um canto qualquer de pedras sozinhas onde ninguém saiba o meu nome, deito o corpo cansado de frio e sonho. Sonho como a criança que fui. A última criança num mundo de velhos em corpo jovem.
Vasculho qualquer coisa no lixo. Apercebo-me disso porque um pedaço de lata corta-me a ponta do dedo, de outra forma nem me lembraria. É já tão automático ser vagabundo que nem reparo bem no que faço. Encontrei uma manta, meio rota e encardida, insuficiente para afastar o frio polar que se instala em estalagmites de orvalho, mas que terá de servir. Às vezes pergunto-me como seriam os tempos que passava os serões à lareira, em casa da minha avó, nessa época em que os sonhos saltitantes ainda eram meus também. Já não me lembro. E juro que me parece que falo de outra pessoa, um outro gaiato a quem lia os sonhos, a criança que nunca fui.
Encontro um cartão rugoso pelo chão e por momentos quase me sinto feliz. Curiosa a simplicidade da alegria de quem nada tem. Acho que envelheci, acho que foi por isso que aqui vim parar. Acho que as crianças de hoje deixaram de sonhar, saem do ventre materno logo com 15 anos, reguilas e malévolas. Acho que é por isso que secaram as minhas fábulas e contos, que os reis do Oriente por lá ficam e as princesas adormecidas não mais são despertadas. Acho até que é por isso que já sei o que significa sentir os ossos gelar, sentir a pele encarquilhar de frio, sentir o tremor de um medo de fim. Acho que é por isso que não sei mais o que é ter amigos, o que é ter família, o que é uma casa com lareira e risos estridentes de criança. Acho que é por isso que o meu circo partiu para outras bandas. Acho que é por isso que não queriam tantos contadores de estórias. Acho que não queriam velhos, e não tiveram coragem de o dizer. E como censurá-los? Já não há crianças para ouvir os velhos, já não há sonhos que se renovam de geração em geração, ensinamentos que a idade traz e acendem labaredas de curiosidade nas almas naive dos rebentos de uma nova era.
Pego no meu cartão e na minha manta, encontro um canto qualquer de pedras sozinhas onde ninguém saiba o meu nome, deito o corpo cansado de frio e sonho. Sonho como a criança que fui. A última criança num mundo de velhos em corpo jovem.
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