Trovoada
Parece que amanhã chove. A D.ª Gertrudes declara-o como visionária, com ares de quem descobriu a solução para todos os problemas do mundo. Inclina-se sobre o balcão e fita o céu, chove de certeza, estas nuvens só enganam os grã-finos da cidade. Amanhã chove, e eu, grã fina da cidade que sou, não vejo mais do que o sol radiante que espreita por entre nuvens cinza claro. Tenho vista curta, não sou como a D.ª Gertrudes. Embora saiba que o cinza claro é na verdade um imenso arco-íris cromático, é só o cinzento que vejo, e não sei ler nas linhas do céu a pluviosidade futura.
Alguém se esqueceu de um pequeno caderno preto na mesa à minha frente. No pequeno café da D.ª Gertrudes há sempre alguém que esquece alguma coisa: um caderno, uma carteira, um queque que ficou a meio pela chamada telefónica inesperada, um cigarro por apagar. "Toda a gente corre nesta cidade!", diz a Dª Gertrudes com a mesma incompreensão resignada e desaprovação da avó que vê os netos crescer para uma vida tão diferente da sua.
Pergunto-me o que diria a D.ª Gertrudes se soubesse o que vai dentro de mim. Tenho a certeza de que me daria um conselho sensato, que me diria que sou ainda uma criança com medo do escuro, uma grã-fina da cidade que não entende nada da vida. E teria razão.
Alguém voltou a mencionar o teu nome. Alguém me disse que te viu, atarefado, com ar cansado, com vontade de mudar de vida. Alguém fez por evitar dizer-me o evidente: em nenhuma dessas vidas me incluo. Alguém esboçou um sorriso triste de compaixão. Alguém, não tu, disse-me que nada muda. Alguém...e podias ter sido tu. Ou podia ter sido o corpo que agora se move por cima de mim.
Há um corpo que o meu corpo chama, uma alma que quero acarinhar, e não consigo, somente finjo que sinto o que é já vazio. Há uma promessa de vida, um alento para a minha solidão, e não parece ser suficiente. Há um corpo que arfa sobre mim, e assim, em gritos de um prazer inusitado, tira de mim a adrenalina da jornada extenuante a que me entrego sem descansar. Prazer efémero, prazer movido por um carinho tímido e umas doses de hormonas. Há um corpo que é somente um corpo, no qual reside uma alma que tento compensar pela minha falta de vontade de ficar. Há um corpo que me enxuga lágrimas, me leva a passear à beira-mar, não se importa de atravessar a chuva para me beijar, ensopado e atirado à enxurrada de um sentimento que insiste em não crescer dentro de mim. Há um corpo a que terei de dizer adeus um destes dias. Há um corpo que não consegue fazer-me esquecer o teu. "Hoje ainda te vou fazer dizer que me amas", grita entre gemidos, "hoje não te vais embora", diz, e eu nada digo, "estás a apaixonar-te por mim", e eu desisto de ser tão sincera, e eu desisto de lhe explicar, amanhã vou embora de vez para nunca mais o magoar. E nunca vou. Acho que não consigo suportar a ideia de chegar a casa cansada depois de um dia de imenso trabalho e não ter com quem partilhar as minhas vitórias e as minhas frustrações.
Do café da D.ª Gertrudes parece que tudo se vê mais claramente e simultaneamente tudo fica distante, como o filme que passa frente aos nossos olhos sem que o toquemos, sem que o sejamos, quase esquecendo... Hoje alguém esqueceu um caderno e partiu tão cedo que nem soube que amanhã vai chover. Quando voltar para reaver o caderno, voltará encharcado, e a Dª Gertrudes sabiamente dir-lhe-á: "se me tivesse ouvido não estaria assim! Leve lá o seu caderno, e um chapéu-de-chuva, e não se esqueça que amanhã há trovoada! O céu nunca mente, as pessoas da cidade é que não sabem lê-lo".
Acorda-me amanhã, se ainda me chamar Sofia, se ainda te lembrares do meu nome que eu já quase esqueci, e diz-me se continua a chover. Deixei a minha vida sentada à tua espera no café da D.ª Gertrudes, e hoje, em corpos que me têm e almas que se evaporam, até o meu nome perdi. Se não me encontrares na cama pergunta lá por mim. Dizem que aí me viram ontem pela última vez, sentada numa cadeira, abandonada, no mesmo sítio onde me perderas, à espera que, apesar da chuva, ainda queiras abraçar-me novamente.
Alguém se esqueceu de um pequeno caderno preto na mesa à minha frente. No pequeno café da D.ª Gertrudes há sempre alguém que esquece alguma coisa: um caderno, uma carteira, um queque que ficou a meio pela chamada telefónica inesperada, um cigarro por apagar. "Toda a gente corre nesta cidade!", diz a Dª Gertrudes com a mesma incompreensão resignada e desaprovação da avó que vê os netos crescer para uma vida tão diferente da sua.
Pergunto-me o que diria a D.ª Gertrudes se soubesse o que vai dentro de mim. Tenho a certeza de que me daria um conselho sensato, que me diria que sou ainda uma criança com medo do escuro, uma grã-fina da cidade que não entende nada da vida. E teria razão.
Alguém voltou a mencionar o teu nome. Alguém me disse que te viu, atarefado, com ar cansado, com vontade de mudar de vida. Alguém fez por evitar dizer-me o evidente: em nenhuma dessas vidas me incluo. Alguém esboçou um sorriso triste de compaixão. Alguém, não tu, disse-me que nada muda. Alguém...e podias ter sido tu. Ou podia ter sido o corpo que agora se move por cima de mim.
Há um corpo que o meu corpo chama, uma alma que quero acarinhar, e não consigo, somente finjo que sinto o que é já vazio. Há uma promessa de vida, um alento para a minha solidão, e não parece ser suficiente. Há um corpo que arfa sobre mim, e assim, em gritos de um prazer inusitado, tira de mim a adrenalina da jornada extenuante a que me entrego sem descansar. Prazer efémero, prazer movido por um carinho tímido e umas doses de hormonas. Há um corpo que é somente um corpo, no qual reside uma alma que tento compensar pela minha falta de vontade de ficar. Há um corpo que me enxuga lágrimas, me leva a passear à beira-mar, não se importa de atravessar a chuva para me beijar, ensopado e atirado à enxurrada de um sentimento que insiste em não crescer dentro de mim. Há um corpo a que terei de dizer adeus um destes dias. Há um corpo que não consegue fazer-me esquecer o teu. "Hoje ainda te vou fazer dizer que me amas", grita entre gemidos, "hoje não te vais embora", diz, e eu nada digo, "estás a apaixonar-te por mim", e eu desisto de ser tão sincera, e eu desisto de lhe explicar, amanhã vou embora de vez para nunca mais o magoar. E nunca vou. Acho que não consigo suportar a ideia de chegar a casa cansada depois de um dia de imenso trabalho e não ter com quem partilhar as minhas vitórias e as minhas frustrações.
Do café da D.ª Gertrudes parece que tudo se vê mais claramente e simultaneamente tudo fica distante, como o filme que passa frente aos nossos olhos sem que o toquemos, sem que o sejamos, quase esquecendo... Hoje alguém esqueceu um caderno e partiu tão cedo que nem soube que amanhã vai chover. Quando voltar para reaver o caderno, voltará encharcado, e a Dª Gertrudes sabiamente dir-lhe-á: "se me tivesse ouvido não estaria assim! Leve lá o seu caderno, e um chapéu-de-chuva, e não se esqueça que amanhã há trovoada! O céu nunca mente, as pessoas da cidade é que não sabem lê-lo".
Acorda-me amanhã, se ainda me chamar Sofia, se ainda te lembrares do meu nome que eu já quase esqueci, e diz-me se continua a chover. Deixei a minha vida sentada à tua espera no café da D.ª Gertrudes, e hoje, em corpos que me têm e almas que se evaporam, até o meu nome perdi. Se não me encontrares na cama pergunta lá por mim. Dizem que aí me viram ontem pela última vez, sentada numa cadeira, abandonada, no mesmo sítio onde me perderas, à espera que, apesar da chuva, ainda queiras abraçar-me novamente.
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