Thursday, February 23, 2006

Entre Campos

Se esta cidade fosse outra. Se esta gente fosse outra. Se este tempo fosse outro!
Sim, seria deveras tudo igual, tudo exactamente o mesmo, monocordicamente repetido até ao limiar indefinido, quiçá inexistente, do Universo.
Civilização é circular aqui, frenética e egoisticamente, como toupeiras cegas, activamente corrompidas na inércia de empatia. Civilização é caminhar para si e em si, sem ninguém, sozinho. E chorar a solidão. Civilização é comer o pão amaçado que cuspimos aos outros sem o saber. Civilização é correr e não chegar, é falar e não saber, é não gritar, não protestar, não quebrar o ciclo vicioso das vidas programadas que desprezamos, querendo-as.
Civilização... O que é isso? “Já nada é como antigamente menina”... O velho, chamar-lhe-iam; “humilde e bondoso”, dizem os jornais como se um título honorífico lhe atribuíssem, como se o premiassem por ser uma espécie em vias de extinção, um bicho de zoo. Não sonham como ele sonha com o que viu, olhos brilhando de uma alegria descontrolada, não brindam à amabilidade como ele, nos 60 anos que dedica à família que escolheu para si, nos 80 em que vive e sobrevive, no desgosto e na amargura que não o secam, eternamente jovem, as pernas inchadas em cicatriz, as mãos enrugadas folheando os livros que “os pretos dizem que têm a técnica”, porque afinal eram “os pretos” que lhe davam valor, eles eram inteligentes, eles compreendiam a técnica de quem tem que lutar. no tempo em que os brancos lhe viraram as costas, escarraram o chão que pisou, quebraram o cristal do palácio da sua inocente utopia.
“Os tempos mudaram menina...Já não se pode confiar em ninguém!”, e como visionário proclama as palavras reflectidas no vaivém da interminável gare. Circulando, circulando, circulando, até à extinção do ritmo, à anulação bafejada de um arfar sem dias, sem gentes, sem olhos, sem rosto, sem sonhos, sem vida. Circulando continuam pelos trilhos pré-definidos, previamente estabelecidos, por quem?, por todos, e por ninguém. Porque a sociedade brota hoje do mito que sendo nada é tudo, invertido, porque é um tudo que espremido dá nada. Não há fé, não há amor, não há vida. Há aqui, há agora, há eu, e nada mais. No circular interminável, no sumo que não se suga das fisionomias ausentes, na “explosão em Bagdade mata dois soldados norte-americanos e algumas centenas de iraquianos”, na voz impessoal que o anuncia, semi-inaudível, semi-distante, semi-electrónica, semi-fria, no distorcer da voz (in)soniaca anunciando a chegada da velocidade cromática que ainda antes de ela se dissipar me levitou. Circular, circular, circular. O dia é aqui noite. As faces são sombrias. A claridade de um espaço exíguo, delimitado, belo, preservando raízes de quem parece não mais existir, invade-me, sem que isso algo me diga. Autómato como todos os outros. Como nós, que somos eles. E eles nós. E assim sucessivamente, interminavelmente. Sem que o queiramos, sem que o mudemos...
“Se eu não morresse nunca!”, está ali e está em nós. E estava nele que morreu como temia, tal como nós. “Todos temos o que merecemos”, será mesmo assim? Ele buscou a perfeição, essa que me atormenta, me limita, me exaspera, me mantém viva, sem que eu saiba, ou possa algum dia saber, o que ela é, desejando-a sempre, perpetuamente, fragmentando-me para a encontrar, naufragando em dúvidas e “depressões” pela evidência da sua superioridade ou inexistência. Eu, humana mas diferente, diferente dessa igualdade que os forma, os modela, outra, mais real, mais viva, mais pensante. Outra.
Essa que se julga diferente sendo igual...
Talvez um pouco mais só.

O mundo não é só hoje, não é agora. O mundo seria o combate que ignoramos, sentados a meia distância da meta final, a amarela, na etapa universitária, no caminho indefinido por outros decidido: por todos nós.
“Próxima estação: Entre Campos.”
Entre algo. Campos? Entre o verde, a infinita beleza, o sonho.
Entre. Então porque me olham todos com desdém? Desconfiança? É verdade, quase me esquecia, “já não se pode confiar em ninguém.”
Próxima (que futuro?)...Próxima estação. Ah, claro, fim.




a autora