Thursday, January 28, 2010

hoje eu e não o outro que aqui me invento

Passando palavras com os olhos. Os olhos, como o scroll do teclado, passando rápida, rapidamente, passando caracteres que não lê, passando-os o mais depressa que consegue, empatar tempo, fugir às lágrimas que insistem em escorrer rosto fora, que insistem em quase se tornar frenéticas. O som do piano. Não está aqui, mas entoa cá dentro, entoa de dentro, entoa só para mim. As lágrimas caem ao som do piano, porque é um piano, porque são os meus dedos, porque não está aqui, não há aqui. Tantos anos deixamos passar...tantos anos que levamos a construir a forma de nos desgastar, de nos perder. Tantos anos escavando o desfecho de que fugimos, sem que o saibamos, sem que o queiramos. Tantos anos que já não sabemos mudar nas suas réplicas futuras. Tantos anos, tantas vidas, tantas lágrimas e pianos e noites em que nem um copo nos encontra para trazer de volta o afago de um abraço. Tantos anos, e no entanto sempre o mesmo sítio. Procurar sair e não saber mais como. Chegar ao momento da mudança, e perceber que o caminho se esgueirou.

the queerest of the queer

Puxar o cabelo para trás, endireitar as costas, mudar de posição num pequeno contorcer das nádegas, maior o aparato do que a real deslocação. Não, não há canetas, hoje teclas. Sinto falta das canetas. De sentir as canetas entre meus dedos flutuando, riscando raiva, amachucando o papel, atirá-lo e nunca cesto no caixote ao fundo. Hoje só teclas. E a falta de sentir algo palpável. Algo que seja além de mim.
Há tanto tempo... outra pessoa que não eu. Agora o espelho gritar eu, mas já não ser eu. Uma face vazia, uma cara qualquer, tão sisuda e enfadonha, tão nula, tão nada. Se o fracasso tivesse rosto, sei-lo, seria assim. Seria eu.
Em tempos ouvi dizer que renasceu vida por entre as rochas. Flores à tua volta e assim um novo alguém. Contigo sempre só alguéns. Não sei sequer se temos nome. Acho que sem o saber, certamente sem o querer, alguém me revelou o que calculo que quisesses esconder. Depois de mim o mundo não parou. Sempre tu e o teu astro imaginário em que envolto te vês. Iluminado, julgas tu. Asseguro-te que a lâmpada está fundida. Não emite calor algum. Há muitos anos que, como eu, é somente um nada. Um calor de nada, um sentir de nada, um viver de nada, um amor de nada. Era de ausência de respeito a que se quer chamar amar.
Acabei por descobrir o que significa definhar sem estar doente. Se encosto os dedos uns aos outros descubro inusitadas camadas de gordura; o meu corpo meros ossos segurando a pele manchada de altinhos brancos; já não vejo madeixas de cabelo cair-me no rosto, camadas de empapada oleosidade juntam todas as fibras capitares; se os pés me gelam lá em baixo não quero saber, e a minha cama é o mundo inteiro. Às vezes rompo com a letargia e encontro o abismo. Pesadas camadas de névoa à minha volta, e um pânico crescente em auto-ódio, perder o medo ao tétano e golpear-me furiosamente. Porque mereço. Porque falhei em tudo. Porque me envergonho. Porque agi mal. Porque te perdi. Porque nunca te tive. Porque por ti perdi todo o resto da minha vida. Porque tenho culpa. Culpa de tudo. Porque talvez esta a única coisa que hoje consigo sentir. A dor que não seja por dentro, mas vinda de fora. Porque assim algo é real. Porque custa muito menos.
Queres crescer? Queres secar dentro de mim? Por favor, aceitas corroer-me, destruir-me por dentro? Vem, por favor, eu deixo. Eu juro. Só quero que em ti me mates. Só quero que em mim tu morras.

Sunday, January 24, 2010

"até no que se inventa não vale apenas o que seria"

A noite chega-me sempre tão claramente... por entre as portas fechadas, em candeeiros por acender, em trancas a portas e janelas, por tábuas sobre vidros colocadas. A noite chega-me sempre quando não quero, e quando quero também. Não gosto de o dizer muito alto (talvez por medo de me ouvir dizê-lo), mas acho mesmo que ela nunca se vai embora. E é no rescaldo do assombro da sua chegada que procuro uma outra noite, uma outra porta, uma outra casa, um outro ser. Uma imagem que alguém crie, cheia de luz, cheia de vida. Uma imagem que seja distante, que me faça longe, que me seja longínqua, uma qualquer imagem que não seja eu.
Hoje foi Clarisse quem ma trouxe. Leio e releio uma mesma frase. Leio e releio: "até no que se inventa não vale apenas o que seria"...
Quatro da manhã. Significa que já é dia? Sveglia, dizia ela, Sveglia toca e toca e toca, Sveglia: o tempo. Sveglia toda a Humanidade e o que a atormenta. Sveglia, de ceifa na mão, mais ou menos cadavérica, mais ou menos diabólica, Sveglia em elixir, Sveglia em ponteiros que não conseguimos travar, Sveglia de olhos postos em tudo o que fazemos.
Para mim Sveglia tem outro nome. Sveglia que me persegues, que sei seres tu a destapar-me noite fora, a sussurrar acorda ; Sveglia a invadir-me de ansiedade e de esperança, a projectar-me fantasias que nunca fui, Sveglia em tantos corpos, sob tantas formas, permanente na sua mudança ao longo dos anos, e nunca, absolutamente nunca, lhe posso chamar devir. Sveglia em mim és tu.
Quanto tempo passou desde que um raio de luz sobreviveu aqui dentro? Por mais de dois segundos? Há quanto tempo foi? Já não me lembro... Há quantos anos me chega Sveglia e entra e sai de mim sem que eu te sinta? Há quantos anos de sedas, de cabedais, de dedos escorregando em ligas e corpetes e adereços mais ou menos burlescos, mais ou menos vazios? Há quantos anos tudo o que queiras, levando tudo de mim? Há quantos anos sugares-me a vida devagar, sofregamente, entre meigo e agressivo, entre homem e máquina, entre outras e outros vícios, entre trancas à porta do meu quarto e empurrões entre paredes, esborrachada até esguichar, quantos? Há quantos anos de novo flores, de novo dias, de novo voltares após meses ausente, de novo sorrisos, de novo homem que sinto em cada poro, de novo reflexo de vida? Há quantos anos talvez sim, talvez volte, talvez fique, talvez não mais agrilhoada, talvez nenhuma outra, talvez nenhuma marca, talvez nenhuma garrafa, talvez nenhum serviço? Há quantos anos serviços em que me vendes? E gostas de ver-me ser comprada e recomprada em cada noite mais carnívora. Mas sem as ligas, sem as plumas, sem fantasias nem disfarces, que esses são o que eu sou para ti, o manequim, e neles sou eu despojada de tudo, até de dignidade, neles eu ainda marioneta tua, mas eu em todas as minhas imperfeições. E ademais rentável.
Há quantos anos doentiamente ainda quero que fiques? Há quantos anos esperando o dia, o dia...as minhas próprias fantasias reais...as minhas fantasias...não, meu Sveglia, nem mesmo nelas vale apenas o que seria.