Wednesday, April 23, 2008

Narciso

Narciso acordara um dia já feito homem, desnudo em pleno jardim, porte altivo de quem se espanta de se ver. Narciso nascera brotado de si, de um cruzamento de sol e clorofila, entre o orvalho gelado dos campos. Narciso surgira assim, meio do nada, meio de tudo, como uma espécie de Messias, com a ilusão de com seu toque magnânimo mudar o mundo. Narciso gerou-se a si próprio num corpo de homem, mas na ilusão infantil do mundo lhe pertencer. Narciso era também conhecido na gíria como Peter Pan, porque de facto interiormente nunca quis crescer.

Narciso correu os campos confiante, mostrando toda a pujança do seu ser. Distribuia sorrisos e vislumbres de encantamento, rasgos sapientes de uma barata filosofia que como eureka lhe surge. O mundo para Narciso era ele, e ele de tal forma entranhado que nem se lhe poderia chamar egoísta. Narciso tentava mudar o mundo, Narciso sorria ao mundo, Narciso procurava conhecer o mundo, mas porque o mundo era seu, e tudo o que consigo se cruzasse se adaptaria a si, e todo o pensamento que formulasse partiria, giraria e acabaria no melhor para si. Narciso era assim um egocêntrico.

Um dia, ao caminhar para o lago onde sempre banhava seu corpo e sua alma (aquele irresistível momento orgásmico em que beija seu próprio corpo), descobriu algo novo entre o campo de flores que de cor conhecia (eram todas suas, todas, as florais memórias que ali jaziam inalteráveis). Era uma rosa, nova rosa vermelha que durante a noite brotara. Ela brilhava tão intensamente, cintilava tão ardentemente, tão diferente lhe parecia daquela paisagem que já conhecia!... A rosa era uma espécie de mistério. Havia sonhado com ela, mas nunca a pedira. Era rúbea, linda, mas tinha espinhos, ao contrário de todas as outras não desfalecia à sua passagem, era forte, indiferente, vivia independente a sua espinhosa força inebriada. Narciso logo se vidrara naquela nova flor. Desconhecida, aparentemente distante, bela, tinha que tê-la! A rosa seria sua, tinha que ser!

Assim, ao voltar do seu ritual de auto-adulação, Narciso parou junto à rosa. Regou-a, sentou-se junto a ela, observou o sol irradiando em si mil tonalidades de escarlate, sorriu-lhe. Aos poucos foi-se aproximando, acariciou-lhe as pétalas, e de repente já os espinhos desapareciam ao vê-lo, e toda a vulnerabilidade da rosa lhe era visível. A rosa, como qualquer guerreira, é coragem que se mascára de defesas mas que é igualmente frágil por dentro. Narciso não o esperava. Para si o mundo era um prolongamento de adoração, uma batalha travada para afirmar o eu. Narciso viu, beijou, tomou em si a flor, e partiu saciado. A rosa era agora já só mais uma, talvez um pouco mais bonita, no meio de tantas outras. A rosa que nascera sem que ele pedisse era já sua, podia voltar ao rio para se banhar, inchando o peito em mais uma conquista. A rosa, por sua vez, aprendera que somos responsáveis por tudo aquilo que cativamos, e precisava de cativar e cativar-se. A rosa, que é forte, que é por si própria, que sabe partilhar com o mundo o melhor de si, que não vê o mundo à sua imagem mas como algo a que pertence, criara espinhos pois se habituara já à crueldade do mundo e o seu medo tornara-se enorme. Mas a rosa nunca resistia a um carinho inesperado... E a Narciso deu parte de si.

Narciso partira, julgando que nada mais teria para conhecer, permanecendo na Terra do Nunca onde não sabe o que significa cativar, onde não sabe o que significa olhar o mundo, onde não sabe amar mais que a sua própria imagem.

Narciso caiu no rio. A rosa, apesar de tudo, ainda chorou.

Monday, April 21, 2008

Uma qualquer espécie de fim

Acordei. Parece que sim. Os olhos conscientes esfregaram-se entre meus dedos, e é suposto isso significar que acordei. Ainda uma pedra entalada na garganta, pedregulho espalhando-se pelo peito inteiro, e dissolvida no ar à minha volta, pois só assim encontro motivos para que a atmosfera me pareça acinzentada. Isso ou a poluição, mas dado que só hoje dei por isso deve ser mesmo a pedra que em mim cresceu a dar ares de importante. Que não é. Não pode ser.

Acordei. Não sei que horas são. Não me parece que queira saber. Seja que horas forem vou continuar deitada. De novo a manta ao meu lado que abraço. Nunca é bom sinal quando ela lá está. Colorida como é para preencher um qualquer vazio em mim... Esse onde hoje parasita uma pedra, angular e espinhosa, cravando-se nos orgãos que a rodeiam, rindo-se de mim.

Acordei, mas parece que ainda estou a dormir. Ou a alucinar. É a mesma coisa. O ponteiro avança, o sol da janela que deixo sempre aberta já consegue tocar os meus olhos, quase o vejo em pontas de pés, gargalhando feliz como a criança que se orgulha da pequena maldade. E conseguiu. Não queria vê-lo hoje, não queria constatar que não sinto o seu calor, não queria lembrar outros dias de sol...

O telefone toca, não atendo. Parece distante esse som, uma outra realidade qualquer. A ânsia de ver se um milagre me fará ler o nome que grito por dentro naquele visor... Vã esperança, bem sei, pelo que não me levanto para não chorar. A letargia parece resultar, concentrar o pensamento na água que ontem corria na fonte. Não sei se hoje corre, mas aposto que sim. O mundo não pára por causa de ti. Ontem contudo sei que era quem melhor me compreendia, essa água escorrendo pela pedra que afinal se alojou cá dentro. Sei que é a mesma pedra...nessa água mergulhei para me afundar.

O despertador já tocou umas quinze vezes. Ainda não me apeteceu desligá-lo. A manta enroscada em mim e a lembrança do teu corpo continuando o meu... Guardei tudo num baú, numa pasta de ficheiros no PC, mas há sempre um qualquer cheiro que me invade, há sempre uma luz mais suave a bater contra o cortinado, há sempre um sorriso nuns lábios quaisquer que me parecem os teus, há sempre um riso que ecoa em minha mente, há sempre um vislumbre teu no sofá vermelho, há sempre a tua voz sussurrada... Parece que não sai de mim esse ente entranhado que te é, parece que me habitas e juntas novas pedrinhas ao meu peito já inchado em lágrimas que não quer verter.

A mesma música que ouço repetidamente e é tua, e tem-te em cada nota, e te faz voar ao meu redor... Imaginar-te indiferente, só para me magoar, imaginar-te malévolo, só para me desculpar, enraivecer-me como se o ódio me salvasse, como se sequer ele pudesse existir, procurar respostas para o que a razão não sabe explicar, acreditando nelas encontrar uma falha minha que tudo explique, que eu possa resolver e te traga de volta... E não trará, nada traz. De novo a mesma dor já tão conhecida, que é rígido massisso rochoso correndo em mim por vez de sangue, que é memórias que tento recalcar mas me polvilham, que é felicidade que nunca por muito tempo me é permitida sentir... Julgar-te ainda a única pessoa que comigo se coaduna e saber que não pode ser assim, tentar acreditar que acabou...Tal como previ já não há sorrisos enamorados, olhares encantados com tudo o que me sou... Agora só a benévola ausência de mágoa e o esperar "um dia virmos a ser grandes amigos"... Que arde cá dentro, ferida que não sei sarar...

Acordei? Dizem que sim. Acordei do sonho de ser especial para ti, de viver um mundo que livre voava em amor nas asas de uma ave migrante, vagueando na certeza de ser diferente, única, independente asa de almas que se tocam na inexplicável profundidade que as une e as permite em caminhos separados se cruzar...

Acordei, sim, tenho a certeza. Já não há chaminés de que sem justificação se gosta, já não há patos que contra nossos pés bicam, já não há um imenso sol inundando-nos numa magia que os olhos do mundo não viam, só os nossos...

Acordei. Uma qualquer espécie de pesar germina em mim, e não é mágoa, não é raiva, não é rancor. É amor que já sozinho livre voa na asa de uma ave primaveril, pelos ares de um mundo verde que meus olhos não mais conseguem ver...

Saturday, April 12, 2008

A Dama da Noite

Á noite, talvez por estar escuro, talvez porque inesperado, abrem-se as corolas de um fruto de odores. A branca leveza de suas pétalas emana o perfume das Primaveras inumanas, e nas almas terrenas espraia-se o fascínio do cântico olfativo que nossos corpos excita. Talvez por ser mistério assim nos prenda, essa aromática rainha floral que a noite aos olhos veda.

Assim nasce, ao cair da noite, o néctar do seu desejo.

Na varanda se debruça para sentir a sua chegada. As mãos enrugadas sobre o ferro forjado do palacete art déco, as mesmas de há vinte anos, encarquilhando-se todas as noites um pouco mais. O seu olhar espectante, sempre estático, indicia a aproximação de algo. Eis que o toca a ansiada brisa. Sorri. Fecha os olhos, crava os dedos no ferro, chega-se um pouco à frente, inspira demoradamente... Sorri nesse inalar quase sufocante, todos os dias um pouco mais longo. Um pequeno saltinho para trás, expira, a cabeça gira, em seus olhos ainda cerrados risos de menina dançando e cantando, rodopiando com as flores que ao mundo atira...

Reabre lentamente os olhos, como quem recusa ver, como quem não aceita que nada é eterno, como quem chora o fim esperado. Sempre o mesmo desesperante vazio lhe fica... E no entanto não considera sequer em sonhos evitar essa dor. Mais vale ser-se pleno por segundos e sofrer todas as restantes horas, a não saborear esta elevação, este unir de alma e corpo num uníssono êxtase de felicidade!

Fechar de novo os olhos, agora já na sala, junto ao frio dos quadros, da poltrona e da lareira, na solidão que a ausência desse extracto de Paraíso lhe traz...

Senta-se pesadamente, exausto. Olha as molduras em volta. O que é um cheiro senão pequenas particulas de memórias?