Friday, November 02, 2007

Num fato preto

Perco-me sempre nos pensamentos dos outros quando naufrago pelos transportes públicos. Gentes que entram e saem e sorriem ou nada dizem. Há em mim uma curiosidade imensa pelas suas vidas. Como se chamarão? Porque estarão aqui? Para onde irão? O que os espera nesse local para onde se dirigem, cabisbaixos ou sorridentes? Como será ser em si? Gostarão de pão quente pela manhã? Gostarão mais do campo ou da praia? Como será que gostam dos ovos, escalfados, mexidos? Serão felizes?
Penso sempre como seria bom segui-los, descobrir onde trabalham, com quem saem à noite, porque choram, como acordam… Ao despertar somos sempre mais sinceros, revelando a amiba do que somos.
A confusão instala-se quando as portas do metro se abrem chiando. Pés que nos pisam e ombros que sacodem, o cheiro das gentes e o vento na gare, as escadas cada vez mais exíguas, cada vez maiores, o afunilar dos corpos, passar pela cancela, inspirar o vento frio que nos chega subitamente, o interminável corredor onde as luzes piscam em tons esverdeados. Á minha frente um fato preto escorrega num corpo magro. Quase calvo, baixo, magro, esgueira-se com uma pasta também preta pela mão. A pele parece pálida, diria chinês, aspecto de ilícito, fascinante! Para onde irá? A vontade de discretamente o seguir, descobrir quem cumprimenta pela rua, como caminha, que trilho segue, como o vento faz o seu escasso cabelo esvoaçar, como é o seu rosto, envelhecido?, cinquenta anos? cinquenta e três? Como sempre esta vontade de reter quem se cruza comigo no sorriso que sempre lhes esboço, a curiosidade de ver o que há além daquele fato preto listado, além daquele andar inseguro, além daquela mão que aperta o segredo que guarda aquela pasta…
Hoje vou subir as escadas de encontro à noite fria, sim, mas vou até onde este estranho me levar.
Imagino já tudo… Lá fora o céu é breu, as estrelas cintilam mas nem as vemos, parece distante o firmamento que nos envolve, tão perto de se afigurar uma campânula… Penso sempre o quão triste é esta distância de quem está tão perto… Poderia eu mudar alguma coisa na vida daquele homem? Imaginemos que eu o sigo rua acima, o assador de castanhas arruma o estamine, ainda se sente o cheiro da brasa, as montras já vazias de vida, cheias de pó e luz, um velho na esquina com uma boina e digo boa noite em troca de um sorriso espantado, os sapatos do homem que sigo são pretos e não param, sempre ao mesmo ritmo, a Portugália ao longe em filas imensas de homens barrigudos e famílias tradicionais está cada vez mais perto, tão perto que os pés sapateiam para fazer a curva. Ao entrar na Pascoal de Melo os plátanos gemem com o vento, olho a folha que me cai sobre o rosto e se afasta, um rapaz passa exibindo o mp3, uma criança pela mão da mãe, a marroquina esconde a cara, a loja dos anos 50 junto à Casa Kids junto ao restaurante Amor de Mãe junto ao jardim Constantino com o mendigo dormindo junto aos pés que passam e livros empilhados que abraça…Quem diria? Quase paro. Intriga-me a história marginal daquele homem que mal vejo. Hoje não, tenho que seguir o chinês da pasta preta. E se entretanto, passando a rotunda da Estefânia, já junto ao hospital, com o odor das damas da noite e os parques infantis, a mala lhe caísse? E se eu fosse apanhá-la mesmo quando um carro quase a atropelava? E se ele ficasse eternamente agradecido e se curvasse em sinal de gratidão e respeito? Como seria a sua cara? Como seria a sua reacção? Sorriria? Convidar-me-ia para jantar com a sua família? O que estaria naquela mala? Salvá-lo-ia da tragédia do fim dos rendimentos, da fome da família que é sete filhos, duas irmãs, três cunhadas e respectivos maridos, a sogra viúva, a avó e a mulher?
O corredor é contudo interminável, as luzes piscam a todo o momento, e parece que tudo se transforma…Já não é um fato que se quebra à minha frente, é um corpo nu, um corpo jovem, um corpo moreno, em segundos de entrecortados holofotes sei que é um corpo de homem jovem, um corpo que quase posso tocar, e não posso, e quero, não posso querer…A pele suada, pingos de qualquer coisa que não sei se é suor, álcool, fluído corporal, mas cintila em azul, em verde, em roxo, brilha em todo o lado e em mim na vontade de lamber, a ponta da minha língua em cada poro, toda uma epiderme por mim engolida, trincá-la, saciar a sede de êxtase, “bring it back down, bring it back down”.
Parece que conheço aquele corpo, este corpo que sinto abraçar e que acordo para lá não estar. Parece que é em mim e já me foi, parece que o toco e o sinto, que me sorri e me fala. Parece que é alguém que vive em mim…Parece que esse corpo me diz vem, me repete vem a cada instante em que a luz falha no homem de fato que à minha frente caminha. Parece que o corpo me fala e és tu… Perguntavas-me sempre se te entendia sem, contudo, esperares resposta. Era óbvio que eu concordaria porque o que querias era só acalmar a consciência. Se não aprovasse eu que me lixasse, mas logo refilavas: merda merda merda, desculpa existir!, e assim resolvias todos os problemas.
Olho para o lado, o ladrilho, o latir de um cão lá fora, uma mulher que me dá um encontrão e pede desculpa quase lamentando a sua própria existência. Sigo em frente. Onde está o homem do fato? As escadas já estão à vista e não o vejo, já não o vislumbro no corredor, nem lá atrás porque não passou por mim, tenho a certeza, e à frente… Seguiu sempre em frente, andou, avançou com a sua vida guardada numa pasta preta que eu perdi de vista, absorta em mim e nos meus pequenos problemas. Lá fora já só me espera o meu caminho para casa… E a incerteza de alguém me seguir, alguém questionar o que é afinal a minha vida.

Em vão

Parei. Pensei que se parasse em frente à mesma casa, com as mesmas portadas verdes, o mesmo plátano de folhas esvoaçantes, o mesmo vento puxando-me para o lado o cabelo revolto, ainda me olhasses pela janela. Parei, em frente à casa de onde em tempos me espreitavas ao passar pela rua fingindo não te ver, onde depois ambos entrámos de mãos dadas, onde vimos o luar da mesma janela, a mais pequena, só nossa. Hoje ainda estás à janela, olhando qualquer coisa que eu já não sei ver. Fui eu que saí pela porta ou foste tu que ficaste preso à janela? Já não sei o que foi, o que fui, para ainda menos ter noção do que sou... Sei somente que espero por ti à porta, desconhecendo o dia que é, as horas que passaram. Espero, parada à tua frente, como um fantasma que não consegues ver, invisível, alheio ao teu olhar transfixo. Será que ainda te lembras de mim? Será que alguma vez de facto entrei por essa porta e de brisas sorridentes te preenchi? Será que do alto do teu pedestal novamente me vais esboçar um sorriso?