Sunday, March 28, 2010

chilrear de um velho sol

Há quantos anos quiseste saber pela última vez? Foi há tanto tempo que nem sei mais o que queres que te diga. Encontrar-te no vão da escada um dia qualquer, pareceres-me tu e quem sabe já nem seres. A barba cresceu-te. Acho que te fica bem. Não me parecias tu, mas acho que já só te reconhecia como cópia do retrato na estante. Os anos passam, os retratos morrem devagar, a imagem verdadeira esvai-se na memória, e vai na volta reencontra-mo-la para não mais a ver, porque o momento cristalizado no retrato morreu. Tu não és mais quem foste. Eu, com certeza, não serei mais quem fui. Eu fui em ti, tu em mim, nós um só, e hoje nada, nem juntos nem sozinhos, somos sempre somente nada. Às vezes encontro-te na casa-de-banho de manhã, na cama o corpo ao lado do meu parece-me somente uma ilusão, e de tão frio é como se morto fosse. Hoje faz sol. Gostavas de passear à beira mar. A baía de Cascais sempre te pareceu um local bonito para fugir da multidão. Afinal, estar ali era como estar num mundo só nosso, dado que ninguém à volta nos interessava ou compreendia. Gostávamos de ser diferentes, mas sabes, acho que éramos iguais na nossa arrogante auto-segregação. O sol bate-me no rosto e a maresia está longe. Uma varanda em ferro forjado, uma varanda em Lisboa, o som da minha música de que não gostavas, os óculos que achavas grandes de mais, batom nos lábios, juro, mas nem me apetece sorrir. Acho que me habituei a ser triste antes de te conhecer, depois de partires voltei a ser tudo o que era. Confesso, acho que foi por isso que fugiste. Continuo a ser bonita, continuo a não saber o que quero, continuo a desistir de mim enquanto por vezes luto pelo mundo. Continuo a ser tudo o que quiseste amar e não conseguiste. Continuo sozinha. Quando amanhã te levantares da cama faz menos barulho ao telefone. O teu riso enamorado incomoda-me, e a voz dela é demasiado esganiçada. Se falares baixinho conseguirei dormir mais um bocadinho e, tenho a certeza, ainda vou sonhar contigo.