Friday, April 17, 2009

José Reis, Rua do Garrido, dois filhos

- A minha casa é já ali - disse ele, enquanto girava sobre si à procura de uma forma de me fugir. Nunca nenhuma servia, nem aquelas onde podia escapar, porque não sabia bem se eu afinal lá não estaria.
- A minha casa é já ali, gosto de andar sozinho.
- Onde exactamente? Olhe que é tarde e já não devia andar sozinho. Com quem mora?
- A minha mulher. A minha mulher deve estar a minha espera. Tenho de ir, filha.
- Eu vou consigo. Mas vem de onde?
- Não é preciso, é já aqui, eu faço este caminho todos os dias. Venho do hospital.
- Mas está doente?
- É a minha mulher.
- A sua mulher está no hospital?
- Sim. Eu tenho de ir para casa. Não estava bem a ver onde era mas já me orientei. Tenho de ir, filha.
E de novo às voltas sobre si, sem saber que passo dar, esquerda ou direita?, para seguir em frente. Tinha um saco de plástico na mão encarquilhada. Cheirava a um Old Spice fabricado em casa, daqueles que já só os velhos sapateiros ou donos de drogarias têm, daqueles que o meu avô usava. Todos os avôs usavam e na memória usarão.
- Eu tenho de ir.
E espere lá, para onde vai, que eu cá acho que não sabe, que eu cá acho que vai para sítio nenhum, que eu cá acho que aqui e ali é a mesma rua, que eu cá acho que daqui a uns minutos já não se lembra, Rua do Garrido, e qual é o número? e vive sozinho?, e não que tenho de ir, tenho dois filhos, dois filhos que estão longe, um emigrado, talvez, dois filhos que será que querem saber do pai? E terá netos? Dois filhos que de certeza com o pai não vivem. E a mulher, se calhar até já falecida, há-de ter estado no hospital, de onde não sei se veio, mas dizem que o Sr passa muitas vezes por aqui. Se dissesse adeus a quem passa eu diria que se sente sozinho. Se esperasse à porta do hospital di-lo-ia traumatizado.
- Tenho de ir para casa. É na Rua do Garrido. Já sei onde é que fica. Despistei-me só um bocadinho.
Que ainda está bom da cabeça, eu sei. Que ainda sabe que estamos em 1989. Ano da queda do muro de Berlim, sabia? Já não me lembro...Quando é que isso foi? O ano passado talvez, não é? Gosto de si, sabia? Se pudesse levá-lo a casa para junto da sua mulher ou dos seus filhos. Se me deixasse. Se não quisesse fugir porque consegue sozinho. Se lhe perguntar o seu nome ainda o sabe? José. José quê? José. Mas tem um apelido certamente! José...Reis. Sr José Reis da Rua do Garrido, com dois filhos, uma esposa espectante em casa e doente no hospital, com uma camisa em xadrez verde e vermelha, como a do meu avô, só que a do meu avô em tons de castanho.
Sr. José Reis, espero que um dia o veja novamente, para lhe dizer que caminho seguir, para que possa falar um bocadinho, para que se lembre de como se chama, para depois perguntar como chegar à Rua do Garrido no dia seguinte, esperando que nunca chegue o dia em que se perca para sempre.

Sunday, April 12, 2009

Á quoi ça sert l'amour?

Não é da minha autoria, mas podia tão bem ter sido!...

Encruzilhada

Parar a olhar o nada. Que nada é esse que vejo em tantas cores? Parar. Um turbilhão de obrigações, de respeitos, de pedidos, de afazeres, de vontades de outros que não eu. Parar. Cansada do tempo dos favorzinhos e ajudazinhas e conselhozinhos e sensibilidadezinhas. Parar. Porque se é injusto, porque se é egoísta, porque se é judaica redenção e auto-flagelação por pecados mortais que nem sonhados foram. Culpa. Corroendo as veias. Posso criar uma nova religião.
Parar. O rodopio atordoa-me as entranhas que gritam. Não querer mais ser tão dos outros, tão de todos, tão de ninguém. Não querer mais dar tudo o que se tem e ficar vazio mesmo quando se ganha. Não querer mais que um mundo inteiro tão certo e seguro de repente não mais exista, como se nunca tivesse sido, fechado em copas de uma emoção de que já se duvida.
Parar. Ser eu ou ser o outro é já tão igual. Tirar o sorriso que se veste de manhã para mostrar que se está bem, para não chatear os outros, para seguir o mesmo ritmo frenético de sempre, para fugir, para fingir que não se existe.
Parar. Sentir ser hoje mais possível uma vida mais real. Parar de alimentar o nada que se fita sem se ver. Porque o nada também tem cor. Porque o nada também é vida. Parar. Os esgares que dentro se ouvem também sabem voar. Voar para longe e deixar o mar entrar.
Parar. Porque a vida não acaba aqui.

Saturday, April 11, 2009

bolha

Uma espécie de bolha. Tudo exacerbado, tudo rápido, processos lentos acelerados pela concentração de gentes, de necessidades comuns, de saudades, de vidas que entre si tropeçam, de distâncias de tudo o que é lar. Uma espécie de correria em tanto que se partilha, viver intensamente, cinco segundos como os últimos, sorver a vida em vez de a comer. Sorvê-la alegremente.
O intercâmbio é uma espécie de Big Brother, dirias. No entanto tudo isto é vida, vida que não se repete, que ali foi em novas culturas, e aprendizagens, e gentes, e cheiros, e costumes, e risos tão mais audíveis.
Como uma espécie de amor de Verão aí me incluis, trancada na memória dos loucos meses da juventude adolescente tardia, nos loucos meses da vida intensa, emoções crescendo à flor da pele. Aí me trancas, num qualquer albúm de fotografias que talvez de vez em quando abras. Que talvez de vez em quando ainda ames.
Uma espécie de amor, de olhos humedecidos, de gemidos, de olhos prolongando-se, de risos escancarados, de noites perdidas no tempo ganho, de deslizes de bicicletas, de conversas intermináveis, de surpresas mais enternecedoras e mais ousadas, de viagens, de partilhas, de futuros.
Esperar. De volta ao mundo que deixara em stand-by e em que te quis incluir, de volta ao marasmo do fim de um ciclo, de volta à realidade, longe do amor outrora sentido (há não tanto tempo assim), espero. Espero poder esperar ter-te comigo outra vez. Espero a esperança que insiste em não vir, que não tem base que a sustente, que evaporou pelos canais de outras paragens, de uma espécie de bolha em que vivi.
Espero. E não é esperar que custa, é não saber o que fazer com o tempo que já nada tem para esperar.
Que um dia voltes. Que um dia me revejas. Que um dia tenhas menos medo. Que um dia me ames de novo, no sussurro das noites em que dois corpos de almas tão díspares se uniam formando um só...Um todo aqui e agora permanecendo além das barreiras do tempo e da lógica, além de qualquer múrmurio de fim.
A tua imagem dentro de mim e já lá não estás... Quando voltares a apertar-me a mão tão trémula avisa. Que tenho medo que já não o sinta. Que tenho medo de já não saber onde começar tudo o que perdi.

Exercício de escrita criativa 2

Esperar. Nada mais me é dado hoje. Esperar que chegues. Esperar que queiras. Esperar que sintas. Esperar que talvez chores. Sim, quero que chores, que sintas em ti a nota estridente desse gemido de dor que só dá quem sente.
Espero no degrau que encontrei perdido na rua. Dizem que há uma porta azul por trás de mim. Talvez dissesses que combina com o meu vestido agora verde pálido, uma espécie de montanha de pistachos que subirias. Vã esperança, talvez. Contemplo o gelado de morango entre meus dedos. O creme desce lentamente entrelaçando-se nos poros pegajosos, esponja sugando a doçura do dia. Olho em frente. Espero que chova. Aqui, sobre mim, lavando este nojo que de mim sinto.
Espero-te. Fito o céu na esperança de que um balão de ar quente te traga, como nos filmes que imaginei na infância. Espero-te, já sem esperança. Seis da tarde e o casamento às onze horas. Ás onze horas de um de Novembro. Novembro de 1986.
E eu aqui fico, esperando-te, entre esta "docegente" que passa com pena não sabe de quê, com palavras caladas na prisão do silêncio que me deste.

Exercício de escrita criativa 1

Em criança acreditava que as árvores me respondiam. Passava noites acordada a olhá-las por entre janelas embaciadas. O frio lá fora, o bafo quente da braseira, as vozes lá dentro que sempre pensei que um dia os vidros partissem.
Na Beira há velhotas que se escondem por entre janelas rendadas, há animais que dormem aos nossos pés, nas "lojas", há pedras escuras em que descalços corremos, há sinos que tocam estridentes. Haviam também rixas de gentes que não sabem que a terra se dá, de gentes que servem subservientes, retratos a sépia de uma sociedade feudal.
Se os humanos já não sabiam ouvir-nos, talvez as árvores sorrissem melhor. E por trás da janela, em silêncio, eu falava com a minha amiga de cabelos verdes esvoaçantes. Contava-lhe o meu dia e ouvia o seu. E sabia que ao olhá-la também dentro de mim aquela árvore respirava.

Regresso a casa

Parece-me sempre que devo virar a página e não olhar para trás, quebrar o ciclo, cortar o mal pela raiz. Mas não há mal, é só passado, mais ou menos feliz, mais ou menos repetido. De volta à vida com o fim do sonho vivido. De volta à casa de que confesso não ter tido saudades...Talvez porque nunca deixou de fazer parte de mim. O passado é sempre em nós. E como já Andy Warhol dizia: "life is a series of images that change as they repeat themselves".