nostalgia beirã
Cheirava sempre a um misto de mofo, mimosas e água benta. Um pouco de giestas também. Ás vezes naftalina espirrando das arcas retidas na loja.
A Beira da minha infância tem lojas por baixo de casas onde respira gado guardado e sacas de pevides e pêros e alhos. Em cada janela rendilhada de xisto uma velhota espreita curiosa, olhando por cima de óculos e xailes com os pés flutuando nas brazeiras, ensaiando olhares intimidadores de manhãs na igreja, de sermões de párocos e beijinhos no pézinho do Menino Jesus, tudo abençoado pela Serra brilhando branca no alto, verdejante pelas encostas de vinha. Em toda a Beira sempre metro e meio de terreno por que se perde a vida, sempre casas abandonadas onde os pés gritam saltitando a rapoza que juro que vi e afinal era um gatinho. Nas traseiras de qualquer casa beirã há sempre uma casa de férias de uns primos de França, esporadicamente, quem sabe, da Alemanha, do Luxemburgo, do Canadá, que num português esquisito, com muitos us e errrrrgs, nos mostram as novidades da pop estrangeira e nos enchem de espanto em meninas de biquinis reduzidos pelos pátios de cimento. Na Beira da minha infância nunca faltavam folares, filhós, bolos de soda, broas, nunca faltava um Cristo pendurado na parede cheia de fotografias antigas, nunca faltavam caminhos de pedra até ao rio onde se atiram pedras para saber "quantas bruxas há no Pesinho". A Beira da minha infância é Baixa, feita de gente que luta arreigada para resistir ao frio, à fome, ao feudalismo que nunca dali saiu. A Beira Baixa do Zézere, da Covilhã, das aldeias a caminho da Torre da Serra, é essa a minha Beira, terreno fértil do meu imaginário em sépia.
Mas mais Beira há além do meu mundo de xisto. Campos e campos de granito a perder de vista, montanhas de frondosas árvores e cachoeiras, onde miúdos fazem rappel e antigos sanatórios abandonados se erguem, onde se excitam queimadas de Judas pela Páscoa, e relaxam banhos de malvas em orações populares. Uma outra Beira, mais Alta, de um imponente Caramulo que não alcança a Estrela, dos mesmos primos emigrantes, dos mesmos metros de terreno por que se mata, das mesmas lojas, das mesmas comadres da Igreja, mas sem as minhas pedras ao rio, sem os meus serões olhando fotografias de pessoas que não conheço e dizem ser da minha família, sem madrugadas acordadas pelo sino que me diz as horas, tão improváveis na sua alvorada, que juro que não queria saber. Uma nova Beira onde encontro homem, desconhecido nos tempos beirões de correrias infantis, onde descubro uma nova forma de alegria, nova forma de rir, nova forma de chorar. Uma nova Beira onde descubro o beirão, talvez parecido na minha Baixa Beira, talvez igual por todo Portugal, talvez só ali, de espingarda para a caça na mão, de fotografias de mulheres-objecto, de idas à prostituta com os amigos, e outras anormalidades tão normais ali. E no entanto ao mesmo tempo tão terno, por trás da máscara do Rei da Aldeia, nos intervalos de inchar o peito e em braços de ferro medir o pénis, que em tanta testosterona há sempre um homem e uma criança, um homem corajoso e divertido, um homem terno e atencioso, uma criança traquina e inconsciente, uma criança ingenuamente má. Assim se faz o melhor e o pior de um mundo de granito em que mulheres vestem as calças para ser submissas.
Eu, que guardo a Beira apertada junto ao peito numa memória da infância, não consigo voltar para esse mundo de cinzenta beleza em rígida fisionomia, não consigo ficar nos olhos azuis de homens que cospem para o chão, não sei ser parte da feudal hierarquia social de uma Beira que amo, tanto Baixa como Alta, toda a Beira que é em mim em tantas fases da minha vida. Eu, como Lisboa, por vezes como o Porto, diletante e vagueante, um mundo que me corre pelas veias e escorre em tinta, um mundo de novidades culturais, de experimentalismos, de emoções à flor da pele, de liberdade, de ser tudo o que sou e tudo o que posso ser, sem amarras, sem que me julguem, sem que me queiram prender. Não sou da Beira, por muito que ela respire em mim e me faça sorrir. Não sou da Beira, não, não sou pedaço de ti.
A Beira da minha infância tem lojas por baixo de casas onde respira gado guardado e sacas de pevides e pêros e alhos. Em cada janela rendilhada de xisto uma velhota espreita curiosa, olhando por cima de óculos e xailes com os pés flutuando nas brazeiras, ensaiando olhares intimidadores de manhãs na igreja, de sermões de párocos e beijinhos no pézinho do Menino Jesus, tudo abençoado pela Serra brilhando branca no alto, verdejante pelas encostas de vinha. Em toda a Beira sempre metro e meio de terreno por que se perde a vida, sempre casas abandonadas onde os pés gritam saltitando a rapoza que juro que vi e afinal era um gatinho. Nas traseiras de qualquer casa beirã há sempre uma casa de férias de uns primos de França, esporadicamente, quem sabe, da Alemanha, do Luxemburgo, do Canadá, que num português esquisito, com muitos us e errrrrgs, nos mostram as novidades da pop estrangeira e nos enchem de espanto em meninas de biquinis reduzidos pelos pátios de cimento. Na Beira da minha infância nunca faltavam folares, filhós, bolos de soda, broas, nunca faltava um Cristo pendurado na parede cheia de fotografias antigas, nunca faltavam caminhos de pedra até ao rio onde se atiram pedras para saber "quantas bruxas há no Pesinho". A Beira da minha infância é Baixa, feita de gente que luta arreigada para resistir ao frio, à fome, ao feudalismo que nunca dali saiu. A Beira Baixa do Zézere, da Covilhã, das aldeias a caminho da Torre da Serra, é essa a minha Beira, terreno fértil do meu imaginário em sépia.
Mas mais Beira há além do meu mundo de xisto. Campos e campos de granito a perder de vista, montanhas de frondosas árvores e cachoeiras, onde miúdos fazem rappel e antigos sanatórios abandonados se erguem, onde se excitam queimadas de Judas pela Páscoa, e relaxam banhos de malvas em orações populares. Uma outra Beira, mais Alta, de um imponente Caramulo que não alcança a Estrela, dos mesmos primos emigrantes, dos mesmos metros de terreno por que se mata, das mesmas lojas, das mesmas comadres da Igreja, mas sem as minhas pedras ao rio, sem os meus serões olhando fotografias de pessoas que não conheço e dizem ser da minha família, sem madrugadas acordadas pelo sino que me diz as horas, tão improváveis na sua alvorada, que juro que não queria saber. Uma nova Beira onde encontro homem, desconhecido nos tempos beirões de correrias infantis, onde descubro uma nova forma de alegria, nova forma de rir, nova forma de chorar. Uma nova Beira onde descubro o beirão, talvez parecido na minha Baixa Beira, talvez igual por todo Portugal, talvez só ali, de espingarda para a caça na mão, de fotografias de mulheres-objecto, de idas à prostituta com os amigos, e outras anormalidades tão normais ali. E no entanto ao mesmo tempo tão terno, por trás da máscara do Rei da Aldeia, nos intervalos de inchar o peito e em braços de ferro medir o pénis, que em tanta testosterona há sempre um homem e uma criança, um homem corajoso e divertido, um homem terno e atencioso, uma criança traquina e inconsciente, uma criança ingenuamente má. Assim se faz o melhor e o pior de um mundo de granito em que mulheres vestem as calças para ser submissas.
Eu, que guardo a Beira apertada junto ao peito numa memória da infância, não consigo voltar para esse mundo de cinzenta beleza em rígida fisionomia, não consigo ficar nos olhos azuis de homens que cospem para o chão, não sei ser parte da feudal hierarquia social de uma Beira que amo, tanto Baixa como Alta, toda a Beira que é em mim em tantas fases da minha vida. Eu, como Lisboa, por vezes como o Porto, diletante e vagueante, um mundo que me corre pelas veias e escorre em tinta, um mundo de novidades culturais, de experimentalismos, de emoções à flor da pele, de liberdade, de ser tudo o que sou e tudo o que posso ser, sem amarras, sem que me julguem, sem que me queiram prender. Não sou da Beira, por muito que ela respire em mim e me faça sorrir. Não sou da Beira, não, não sou pedaço de ti.