No fim dos sonhos
O jantar esfriou. Espreito pela janela e nem um sinal teu. Comprei as tuas flores favoritas para o centro de mesa, fiz bifes com molho de ostras que me tiraram cinco horas de dedicação e algumas mais de paciência para repetir a operação a cada falha. Hoje vesti uma lingerie mais arrojada do que eu gosto, só para que não te queixes que sou demasiado simples. Hoje maquilhei-me e pus um sorriso no rosto para apimentar o ambiente. A chama da paixão vai e volta ciclicamente. Tal como tu.
Hoje decidi fingir que não vejo como te esgueiras por entre as portas, como deixas bilhetinhos nos bolsos dos vestidos das criadas, como ignoras o que sinto, o que penso, o que quero, como nem sequer te importa o que quer que se passe comigo. Hoje decidi fingir que existe algo que nos liga, algo além de dois corpos que se devoram noite dentro, algo mais do que duas vidas que se cruzam ao fim do dia para não ficarem sozinhas, algo mais do que um resto de juventude com medo de envelhecer. Hoje decidi acreditar em tudo o que sei que não existe: companheirismo, interesse, paixão, amor. Hoje decidi fingir que sou feliz para te satisfazer. Decidi fingir que não preciso de mais do que estas palavras que por vezes trocamos no cansaço dos corpos suados. Hoje decidi deixar-te pensar que não sei que me queres só para passar o tempo, para não estar sozinho, para depositar esperma em paredes mais húmidas, para rir de vez em quando, conversar de vez em quando, abraçar de vez em quando, sempre que o que em ti é humano pede carinho e compaixão. Hoje decidi fingir que não me sinto vazia e que "tudo o que te dou me dás a mim" e outras frases bonitas que alguém inventou antes de mim (para não ter de rebuscar réstias de emoções que não existem e assim desenhar palavras que acalentem na escuridão).
Hoje, como todos os dias, fito a esquina onde a sinalização luminosa da tasca do Sr. João pisca em luzes quase fundidas. Ora vermelho, ora laranja, ora rescaldo da incidência da luz e subitamente a noite em breu. Lamento a falta do vermelho constante, mas intimamente espero que todas as luzes se apaguem, que todos se vão embora, que fique sozinha, só eu e a noite, nesse único momento em que me posso ser, sem ligas, sem rimel, sem tagliatelli esfriando e colando ao tacho, sem toalhas bordadas e sapatos de salto. Esse espaço onde ninguém existe além de mim e o meu silêncio. Esse local em que todos me conhecem por dentro, porque ninguém ali habita além de mim.
Rodo a cabeça de encontro ao relógio de sala que marca 22 horas. Um movimento semi-circular traz-me de novo à rua. Suspiro. Será que ainda voltas? Talvez hoje não voltes. Pode ser que hoje não voltes. Por favor, não voltes.
Hoje decidi fingir que não vejo como te esgueiras por entre as portas, como deixas bilhetinhos nos bolsos dos vestidos das criadas, como ignoras o que sinto, o que penso, o que quero, como nem sequer te importa o que quer que se passe comigo. Hoje decidi fingir que existe algo que nos liga, algo além de dois corpos que se devoram noite dentro, algo mais do que duas vidas que se cruzam ao fim do dia para não ficarem sozinhas, algo mais do que um resto de juventude com medo de envelhecer. Hoje decidi acreditar em tudo o que sei que não existe: companheirismo, interesse, paixão, amor. Hoje decidi fingir que sou feliz para te satisfazer. Decidi fingir que não preciso de mais do que estas palavras que por vezes trocamos no cansaço dos corpos suados. Hoje decidi deixar-te pensar que não sei que me queres só para passar o tempo, para não estar sozinho, para depositar esperma em paredes mais húmidas, para rir de vez em quando, conversar de vez em quando, abraçar de vez em quando, sempre que o que em ti é humano pede carinho e compaixão. Hoje decidi fingir que não me sinto vazia e que "tudo o que te dou me dás a mim" e outras frases bonitas que alguém inventou antes de mim (para não ter de rebuscar réstias de emoções que não existem e assim desenhar palavras que acalentem na escuridão).
Hoje, como todos os dias, fito a esquina onde a sinalização luminosa da tasca do Sr. João pisca em luzes quase fundidas. Ora vermelho, ora laranja, ora rescaldo da incidência da luz e subitamente a noite em breu. Lamento a falta do vermelho constante, mas intimamente espero que todas as luzes se apaguem, que todos se vão embora, que fique sozinha, só eu e a noite, nesse único momento em que me posso ser, sem ligas, sem rimel, sem tagliatelli esfriando e colando ao tacho, sem toalhas bordadas e sapatos de salto. Esse espaço onde ninguém existe além de mim e o meu silêncio. Esse local em que todos me conhecem por dentro, porque ninguém ali habita além de mim.
Rodo a cabeça de encontro ao relógio de sala que marca 22 horas. Um movimento semi-circular traz-me de novo à rua. Suspiro. Será que ainda voltas? Talvez hoje não voltes. Pode ser que hoje não voltes. Por favor, não voltes.