Sunday, July 22, 2007

Mito

À força de te ver correr por aí, recuei. O mesmo medo que me assolava assalta-me de novo com a intermitência da tua presença. Essa antítese temporal que há em ti, de estar e não estar ao mesmo tempo, sempre me deixou insegura, como se a tua alma pairasse e só por vezes se deixasse vislumbrar, de mansinho, num sorriso, assim de repente.O tempo também deixou marcas aqui, no local de onde nunca partiste, no espaço onde nunca estás...Os meus cabelos mais claros, a minha tez mais enrogada, as minhas mãos mais ásperas, o meu olhar mais vazio...Por vezes, quando entras ainda pela porta (já mais perra, com a tinta a descolar a vivacidade da madeira morta), fixo o meu olhar sempre estático sobre ti. O mesmo casaco já tão curto nas mangas, o mesmo cabelo desalinhado, o mesmo sorriso maroto de criança, o mesmo olhar enamorado pela vida. Em ti parece que nada muda, ainda que hajam prenuncios de calvice e barrigas mais pronunciadas, ainda que as mangas da camisa estejam curtas e hajam manchas sob teus globos oculares, ainda que o sorriso venha da boca de um velho que pareço não conhecer, que parece não existir, porque o olhar que vejo ainda existe sob a forma do garoto rebelde e vivaço, de bicicleta no pé e jornal na mão, gritando vivas ao comunismo que chora e rindo das aventuras do puto que queria ter sido, um Tom Sawyer da Ibéria, de palito na boca e colete no tronco, um jovem destemido de porte clássico que as meninas cobiçam e os rapazolas invejam. E ele ri, ri da mediocridade das gentes e do quotidiano em que nunca se pôde integrar, voando ao sabor do vento, entre o cá e o lá da imaginação, eterno espectador do ser humano que analisa com admiração de coleccionador.A tua existência flutuante fascina-me e enraivece-me, contraditória no que me faz sentir, à semelhança da sua forma irreverente e aluada, um ser mais pensante, mais vivo, um imortal, personificação do elixir da longa vida, o santo graal da contemporaneadade. Não sei se te invejo ou te odeio mais, por de tão sublime seres ausente, de tão etéreo seres distante, inalcançável, tumultuoso sonho de ser livre e ser real.Voas por entre as curvas do tempo, vindo de onde ninguém veio, conhecedor de tudo o que nem se sabe que existe, vives superficialmente a vida por a conheceres de dentro, do tutano de que és feito, mais pensante, mais oscilante, mais harmonioso.Voas também em mim, pedaço de mim que nunca me foi, mas que sou, eternamente, encarcerada em teu olhar vibrante de sorrisos, uma vez por ano, talvez, mas abarcando toda a glória da beleza ideal...À força de te sentir livre, à força de te querer perto quando ocasionalmente desces à Terra, à força de te conhecer como mais ninguém, de te acolher em meus braços mesmo que lá não estejas, continuo aqui, tentando recuar à tua fuga, ficando sempre no mesmo lugar, esperando o dia em que novamente entrarás pela porta, sorriso nos lábios, jornal por baixo do sovaco, cabelo esvoaçante de aterragem, olhar cintilante de alienação carinhosa, que intimamente, ousadamente, ingenuamente, ainda creio ser saudade...

Saturday, July 14, 2007

Devaneio pós-depressivo

Fascina-me o olhar vazio dos transeuntes. O passo sempre ritmado, quase uma fuga, em direcção ao metro que ainda não abriu (parece até que o homem calvo de óculos escuros pode perder o emprego se voltar a chegar atrasado). Há quem olhe de esguelha para logo desviar o globo ocular (que problemas todos temos e isto ou é tricas de namoricos ou anda metida nas drogas), há os que nem notam (tenho que ir buscar o miúdo às cinco, e tenho que ir ao supermercado, e tenho que dar banho ao puto, e tenho que fazer o jantar, e o que é que tinha para entregar no departamento de relações públicas?), e há sempre pouco tempo para ver, por muito que se olhe. Prefiro olhar as pedras da calçada que agora cintilam, e prostrada fico na praça, sem perguntas, sem interpelações. O céu límpido, a rua com cara lavada, o movimento ainda distante, as pessoas que não se importam. A memória tão cheia, sobretudo sufocante, deste espaço agora despojado de tudo...de gente, de frenesi, de máscaras, de caos... Uma praça fantasma, a sua vida suspensa na claridade ainda amena, a naturalidade e a veracidade de um local a descobrir...porque sem vidas atropeladas por horários, tráfegos e impaciência esta cidade surge-nos mais viva, inerentemente bela, vazia mas repleta de outras adrenalinas: caminhos possiveis, sonhos, renascimento de seres humanos.

Na calçada o sol que fito, ao meu redor o chilrear dos pássaros, os pombos esvoaçando sobre mim, a mansidão da espera que me faz pensar e por momentos acreditar: num mundo melhor, num futuro melhor, num dia mais provável, em sonhos já possíveis.

Se me ergo e vejo a minha sombra tenho medo, mas o acinzentado claro do dia anestesia-me. As cores pairam esperando que as saturem, tal como eu espero que me acordem da minha letargia. O metro quase indigente com ruídos permanentes e aparência de submundo, onde as luzes psicadélicas, ferozes de tão brancas, sem variações, sem respeito, sem humanidade, invadem meus olhos de rajada, dilatando as pálpebras já inchadas do choro ( a esta hora permitido, sem perguntas, sem disfarces, sem convenções sociais). É bom sentir que ninguém vê, ninguém questiona, que posso ser mais livre num espaço que me aconchega pelo tempo parecer em si inerte, permanentemente vivo em acalmia, tolerante e iniciático.
No metro em que me durmo os olhos cerram-se sobre o metal. Como sempre concentro-me na pega (não sei que nome lhe dar e este parece-me servir) que se assemelha a uma corda de forca e recrio a imagem dos enforcados suspensos, balançando ao ritmo da carruagem de circular interminável. Sinto que os muitos que o sol trará já assim estão há muitos anos...e hoje vejo-me a observar o meu próprio corpo dependurado. Há um alívio na imagem dessa morte inexistente que quero perpetuar. E a esta hora até isso me parece possível.
De volta à rua, o firmamento...e no campo que é pequeno sinto-me amedrontada, engolida pelas feras das causas que abomino por me estrangularem ideais. Uma felicidade violenta apodera-se de mim ao arrancar o cartaz do PNR, e nesse momento agradeço por ser tão pacifista.
Sigo sempre em frente, sem destino, sem parar. Se quebrar o ritmo do andamento vou cair...e só com o sol alto me saberei levantar. Num corpo mascarado de sorrisos.
Passado o vermelho tão verde dos semáforos há a nitidez do espelhar das janelas do hotel. Páro à sua frente e olho o outro que sou eu, convicta, como nunca fiz e sem temer que me apanhem. De olhos borrados, de cabelo selvagem, de lábios cerrados, de aparência desarrumada, acho-me bonita. Dentro de mim um sorriso: vejo-me e penso-me, sozinha na aurora intermitente...quase me poderia declarar feliz. Reparo que o sol desponta sobre as casas e lembro a utopia das vidraças luzentes na colina que entra rio adentro...ainda as sei possíveis porque luzem desde então dentro de mim.
Regresso-me quase cansada, esquecendo as palavras que perfeitamente se alinhavam na minha mente e não consegui reter. Os meus melhores versos ficaram sempre nos versos impulsivos que o insight me trouxe e a memória proibiu à caneta. Que importa? A vida é novamente possível aqui onde se espera que amanheça a cidade adormecida, onde morrer não parece algo terrível, onde podemos ser sem amarras nós próprios ou o outro que nos sonhámos.
Em mim fica a mansidão da vida que me adormece e me preenche, enquanto o mundo se espreguiça à minha volta.