Saturday, February 20, 2010

agora já sei sonhar, Rui

finalmente os olhos começam a pesar. horas contorcendo os lençóis amarrotados, olhando o branco cálido de um espaço sufocante, fitando o nada dos carneiros saltitantes que se contam. horas tentando encontrar uma porta para o outro lado da consciência. peguei num livro. há tanto tempo não lia... foi beckett. foi teatro. foi sentir-me de novo num palco. alegria. parece que mesmo quando escrevo somente corro ficando parada. parece que estando parada estou sempre ainda assim correndo...tal como tu me dizias.
gostava de colar post-it's na parede com tudo o que me lembras...só palavras que te definam, gritem ou sussurrem o que em mim significas. gostava, mas é tão cedo...e gosto de saber que não há pressa. e gosto de saber que ainda dormes ao meu lado amanhã.
chove lá fora. dizem que é a aproximação de um ciclone qualquer. não sei bem porquê, a palavra ciclone sempre me lembrou a palavra centauro; e centauro é em mim a representação de tudo o que é másculo, de todas essas lendas mais ou menos místicas de destemidos heróis e minotauros, de lutas infindavelmente espartanas, de testosterona que sobressai em farta barba. não sei porquê, pensar centauro traz-me à mente a tua imagem. e, sabendo já porquê, sorrio. sorrio enquanto os olhos se contorcem devagar, enquanto os músculos se tornam dormentes, enquanto o livro cai por entre os lençóis vincados de tanto os apertar para lhes espremer o perfume teu que ali ficou. e hoje não tenho medo. sei que ficas em cada raio de luz de cada novo amanhã.

a vez

aquela vez em que voltaste cabelos soltos pele mais clara para ficar a observar o rio que não sabias que existia o dia 19 sempre 19 e chovia aquela vez em que ficaste e porquê eu não sabia e acho que hoje ainda não sei que naquela vez que só sorriste te cabe no peito o frio lá fora que entra dentro e fica a observar o rio a que voltaste por não saber que existia aquela vez em que voltaste cabelos soltos pele mais clara só mesmo para observar o rio e nele encontraste cabelos que crescem com a luz do dia naquela vez em que ficaste suando frio o amor de dentro aquela vez como qualquer outra aquela vez em que voltaste e ainda hoje não sei porquê aquela vez em que ficaste e de novo brotou de mim cabelo em cada poro aquela vez e ainda crianças brincando lá fora apesar da chuva e a tua mãe ai cala-te aquela vez em que voltaste para me ver ficar e te encontraste mais claro cabelos soltos olhos escuros aquela vez em que o sol é negro o dia é negro e ser negro faz-me feliz aquela vez em que a tua mãe ai cala-te porque gritaste outra vez naquela vez em que voltaste e havia trovoada lá fora e as crianças ainda assim brincavam como se nada fosse aquela vez a tua mãe ai cala-te e tu à janela a ver as crianças lá fora aquela vez dia 19 tudo tão negro crianças lá fora a tua mãe e tu mais claro aquela vez em que feliz voltaste e ficaste para sempre. aquela vez em que o cabelo do dia te tornou noite e assim junto a mim ficaste. aquela vez, quando morremos.

Monday, February 15, 2010

sem-abrigo

Ter frio. Ter frio de tanta fome que sinto. Julgava que os sentidos não se ligavam assim, a fome levar ao frio, a sede levar à cegueira, a falta levar ao medo. Pensei...será? Pensei "será?" vezes a mais. Pensei de mais. Hoje estou sem estórias para contar. Costumavam sentar-se crianças à minha volta, ávidas de sonhos, não se importando com a chuva, não se importando com o frio, nem mesmo se importando com a fome. Olhava-las bem dentro dos olhos, bem fundo na alma, e lia-lhes as fantasias que assaltam o sono, lia-lhes a vontade de saltar de arco-íris em arco-íris, a textura do algodão doce, a forma frágil de que é feito o onirismo infantil. No tempo dos fantoches, dos carros de marionetas pelas ruas, de palhaços moldando balões, de risos em feiras, de pipocas coloridas. Nos meus tempos de circo. Nos meus tempos de jovem. Nos meus tempos sem frio.
Vasculho qualquer coisa no lixo. Apercebo-me disso porque um pedaço de lata corta-me a ponta do dedo, de outra forma nem me lembraria. É já tão automático ser vagabundo que nem reparo bem no que faço. Encontrei uma manta, meio rota e encardida, insuficiente para afastar o frio polar que se instala em estalagmites de orvalho, mas que terá de servir. Às vezes pergunto-me como seriam os tempos que passava os serões à lareira, em casa da minha avó, nessa época em que os sonhos saltitantes ainda eram meus também. Já não me lembro. E juro que me parece que falo de outra pessoa, um outro gaiato a quem lia os sonhos, a criança que nunca fui.
Encontro um cartão rugoso pelo chão e por momentos quase me sinto feliz. Curiosa a simplicidade da alegria de quem nada tem. Acho que envelheci, acho que foi por isso que aqui vim parar. Acho que as crianças de hoje deixaram de sonhar, saem do ventre materno logo com 15 anos, reguilas e malévolas. Acho que é por isso que secaram as minhas fábulas e contos, que os reis do Oriente por lá ficam e as princesas adormecidas não mais são despertadas. Acho até que é por isso que já sei o que significa sentir os ossos gelar, sentir a pele encarquilhar de frio, sentir o tremor de um medo de fim. Acho que é por isso que não sei mais o que é ter amigos, o que é ter família, o que é uma casa com lareira e risos estridentes de criança. Acho que é por isso que o meu circo partiu para outras bandas. Acho que é por isso que não queriam tantos contadores de estórias. Acho que não queriam velhos, e não tiveram coragem de o dizer. E como censurá-los? Já não há crianças para ouvir os velhos, já não há sonhos que se renovam de geração em geração, ensinamentos que a idade traz e acendem labaredas de curiosidade nas almas naive dos rebentos de uma nova era.
Pego no meu cartão e na minha manta, encontro um canto qualquer de pedras sozinhas onde ninguém saiba o meu nome, deito o corpo cansado de frio e sonho. Sonho como a criança que fui. A última criança num mundo de velhos em corpo jovem.