Saturday, December 19, 2009

Elipse

Uma espécie de vertigem. Fechar os olhos e o chão baloiçar. Fechar os olhos e o mundo rodopiando e nós no meio, com uma pressão concentrada em moinha na cabeça. Fechar os olhos à espera que passe. Não sei já porque esperar. Uma adrenalina de tudo o que há para fazer, de todos os problemas latentes e iminentes, de todos os que se vislumbram e os que nunca foram embora. Querer lutar, querer ser melhor, ser mais forte. Uma espécie de zumbido lembrando o caminho a percorrer.
Quantas horas passaram? Parece que foi ontem, parece que há milénios atrás. Quanto tempo desconhecido à minha volta... Caras familiares hoje tão incógnitas. Lutar só mais daqui a um bocadinho, enfrentar só mais daqui a um bocadinho, mover só mais daqui a um bocadinho, ser: só mais daqui a um bocadinho.
Do mundo dos mortos se erguem as maleitas do ciclo que quero fechar. Fast foward e chegar ao fim. Que tudo acabe bem. Que enfim tudo acabe.
Encontro os dedos de novo ensanguentados. Não me lembro de me levantar, não me lembro do xisato na mão, não me lembro de fibras soltando-se e laças ficando prontas a expor a carne. Não lembro, manhãs de nevoeiro que acalmam pela paz estagnada da penumbra.
As horas não deixam, todavia, de passar. E o mundo gira. E a vida prossegue. E gritos e choros distantes por que lutar. E projectos inacabados urgindo uma ânsia de término. E gentes e espaços e rotas e sonhos. O mundo que rodopia numa vertigem. O mundo que se esgota por segundos, no embate do corpo contra o chão, no vermelho dos braços e das pernas, no esvair da ansiedade em flecha. Morrer por momentos e ressuscitar. A vida renovada que permanece imutável.

Vendendo a alma ao Diabo (ou a história de um amor interrompido)

Tirei os livros do saco devagar, esses que nunca lias. Peguei neles delicada e cuidadosamente, talvez com medo de encontrar neles tudo o que não gostava em ti.
Peguei nos livros, pousei-os na mesa, olho-os agora longamente. Num olhar pesado, demorado, vazio. Um olhar ausente. Nunca o disseste, não ousarias, mas eu sei que te assustava. Primeiro o assombro da inteligência e da diferença em que me vias, esse que me elevou a um pedestal; depois o susto de uma doença que não entendias; e finalmente a heresia de não ter medo de mostrar a minha fragilidade. Todos a temos em nós, todos, acontece que uns aceitam-na, outros mascaram-na. Eu, que me vejo menos do que sou, aceito-me. Quem diria, não é?
Reparo nos livros: o azul da lombada do meu Orlando acalma-me. Parece que vejo nesses olhos pintados na capa um sorriso teu. E tu correndo na bicicleta trazendo as comprar para casa. E tu rindo do arroz natural do Julian. E tu sorrindo e abrindo os braços para me agarrar... Prendias-me com tanta força que nunca mais de lá saí.
Passaram nove meses. Já não chegas a casa gritando "amor lindoooooooooooo"; já não me mostras no espelho como sou bonita; já não trauteias todas as manhãs ao levantares-te nu da cama; já não me trazes o pequeno almoço, nem me contas o teu dia, nem me beijas com uma lágrima no canto do olho por qualquer coisa que te escrevi.
Devia ter-te mostrado Dorian Gray, em vez do moribundo de Tchekov. Talvez o medo de envelhecer te tocasse mais do que essa "história de um homem que morre". Como me chocou (e exasperou!) essa tua observação simplista! E hoje penso como preferia continuar a ouvir críticas pouco elaboradas de quem ignora a metafísica, mas ter os teus olhos brilhando só para mim, as tuas mãos aquecendo o frio das minhas, viagens em que custam despedidas, o teu corpo abraçando-me na noite.
Olho os livros geometricamente colocados lado a lado. Os livros que leio. Os livros que me fazem sonhar. Os livros que me ensinam. E não, não são mero entretenimento do espírito, são o alimento da alma, são motores de evolução. Apesar disso, hoje rasgá-los, e dobrá-los, e pisá-los, e queimá-los. Vender a alma ao Diabo, acreditar no tarot (e é bom que me diga que voltas!), ir à bruxa, enfeitiçar-te sobre qualquer forma, até doar todos os meus livros, empilhados, povoados de memórias, de imagens, de estórias que o formam e os circundam pela minha própria história. Tudo para voltar a ter-te aqui. Aqui, dentro de mim.

Sunday, December 06, 2009

o Outro

Tudo tão negro à volta. As pessoas que passam e me vêem, me vêem tanto que me sabem mortal, que me sabem infame, tão aquém do que podia ser, de tudo o que devia ser, tão vergonhosamente nada. Todos os que passam parecem gritar-me a minha inferioridade, todos me olham pelo canto do olho. Quero fechar-me em casa, sozinha, sem mundo que me envergonhe por ser diminuta, por ser um qualquer resto do que fui, será que fui? Um vestígio, mastigado e cuspido, de algo irreconhecível. Tudo parece tão claro lá fora, agora que o vejo de dentro; tudo ferozmente brilhante nos olhos que se esgueiram para baixo enquanto rúbea se torna a face. Fechar todas as persianas, já! Fechar tudo, trancar-me aqui dentro, a sete chaves, e engoli-las depois. Passos. Parece que me perseguem esses esquadrões da morte que me mostram o quanto tenho de fraco, o quanto tenho de torpe, o quanto tenho de nada. Passos que sei que vêm de dentro de casa, mas não os vejo, não há corpos, só os passos cavalgando por dentro, cada vez mais alto, cada vez mais alto! Param. Tranquei-me no quarto, já não me apanham. O que se passa comigo? Não há aqui ninguém, não há, mera ilusão, só ilusão! E um medo tão grande deste medo que sinto, este medo que são todas as estórias que ouvi e me encheram a alma até rebentar, todas as outras que vivi e se esvairam por entre meus dedos ou demoraram até me queimar. Aqui ninguém, e no entanto parece que caras indefiníveis se descolam das paredes. Fecho os olhos, tranco-me aqui dentro, dentro de mim. Assim me dupliquei. Um clone meu vive a vida que deixei de ter. Será que também tem medo? Espreito para baixo da cama, com medo de por lá me ver, olhar o abismo e ele responder. Olhar, e o abismo ser eu. Assim sei, tal como o soube Herberto Helder, que "se eu quisesse enlouquecia".

Thursday, December 03, 2009

Adeus

Dizem que há duas formas de viver a velhice: um suspiro de saudade feliz, ou um amargo de boca que se carrega nas costas com o peso do mundo. Olha-se mais para trás do que para a frente, porque se espera que seja curto o resto do caminho, e o tempo que deixa saudade é a alegria de uma vida intensa, ou o remorso de tudo o que não se fez, de tudo o que não se devia ter feito, de tudo o que não se foi, sem perceber que não se é.
Acho que vivo hoje uma reforma antecipada da minha própria ontologia. Um misto das duas fases. Um buraco que deixa sorrisos para trás e em que tudo estagnou, que não se quer voltar atrás mas não se sabe emendar o que condicionou a paragem do tempo... Agora, no epicentro de um buraco negro. E por ser infinito, o centro pode ser o todo, pode ser eterno. É como olhar no espelho e nada ver. Nem disforme, nem outro, não ver. Olhar para trás com saudade, sim, e não saber o que fazer com as cinzas desses tempos que não voltam. E não saber o que fazer com a incapacidade de os deixar ser só passado. E não saber o que fazer para que das trevas se saia em brumas mais iluminadas. E por momentos não saber mais porque lutar, porque viver. A vida um círculo perfeito, um afunilar de dias e emoções apáticas gritando. Esvair de forças, fechar o brilho dentro de uma lâmpada dita mágica atirada ao deserto, pequeno génio que talvez se evada de um buraco soturno que hoje parece negro, logo interminável.
Estar perdido e assim procurar o saudosismo dos últimos tempos felizes, onde tudo claro e solarengo, onde leve e pleno, onde feliz. Quando perdidos no limiar de um não retorno, bloquear memórias felizes é imperativo para que se mantenha a sanidade mental. Sem alegrias mas sem martírios por não mais as ter, apático e mecânico, quase seco, um vazio cheio de vida fossilizada, cheio de ânsia e revolta.
Para onde ir? Porque lutar? Porquê fingir que ainda se acredita? Porque o mundo sempre se renova e traz-nos de volta a nós mesmos? Por ser verdade? Se eu quiser sou somente um buraco negro. Um eterno nada num eterno vício. Olhar o abismo e este olhar-nos de volta... Nada poderia ser mais aterrador.