Thursday, September 30, 2010

Onirismo envelhecido

Gosto de olhar o tempo, dizia. Agosto ainda ia a meio e já esperava a chuva. Amanhã chuvisca, dizia, e nem uma nuvem no céu. O certo é que de tanto crer realmente assim acontecia. Era velho, a pele encarquelhada,o olhar fixava pontos que mais ninguém via, a boca entreaberta no alegre espanto inocente da infância. O seu corpo era clausura para uma alma jovem, quase infantil, quase imatura, passando anos em rugas mas nunca em envelhecimento. Porque é só na alma que se envelhece, não no corpo. O corpo é mero vesilhame contendo riachos de corrente brava.
Anos atrás disse-me ter medo de envelhecer. Um temor no seu olhar, como criança que se esconde do escuro a toda a volta. Um terror de ver a vida afunilar em linhas esguias de íngremes subidas. Nesse dia apeteceu-me abraçá-lo, dizer-lhe que a sua alma nunca morre, como nunca morrerá dentro de mim.
Anos atrás, como ontem, um olhar embevecido fitando o céu e tudo o que ele lhe lembra como quem contempla a sétima maravilha do mundo, o santo graal, o elixir da longa vida. Anos atrás, em aventuras desmedidas, saltitando em gargalhadas mais ou menos auto-centradas, sempre vivas, nunca descrentes, nunca adultas.
Hoje, perdido dentro de si, sem consciência do mundo, vivendo o tempo que acredita mudar com as suas mãos. E muda mesmo. Dentro de mim o tempo muda, faz-me sorrir, de cada vez que na sua mente o sol torna a brilhar.

Monday, September 13, 2010

Carta ao eu que fui ou ode à solidão

Foi necessário volver trinta anos para que te percebesse. Foram necessários trinta anos para voltar àquela tarde de Verão em que escolhi não te mudar. Foi necessário perder toda uma vida para ganhar coragem para te mandar embora. Hoje, talvez já tarde demais.
Naquela altura tinhas descoberto o amor, era tudo tão maravilhosamente intenso que te assustava. Os dias passavam suaves, sopros de alegria bafejavam-te, e um mundo que não o teu desabrochava perante ti na vontade de te conhecer. Tudo parecia correr bem nessa partilha inesgotável, e o teu mundo permanecia igual mas com um brilho maior. Subitamente, o teu corpo começou a rejeitar o que a ti se dava em carinho como se de um vírus se tratasse, como se um órgão novo tivesse sido transplantado para o teu organismo avesso a mudanças. Parecia-te demasiado, ainda que gostasses. Invadiam-te os pensamentos mais bizarros, uma exigência quase perfeccionista, era bom demais o que recebias e parte de ti não queria dar de volta. Pensaste que era um vício, um demónio dentro de ti que te impelia a afastar tudo o que fosse bom e novo. Pensaste que não sabias lutar e que a fuga a todos beneficiaria. Pensaste que apesar de tudo serias mais feliz sozinho.
Naquela altura, meu caro eu passado, tu eras imaturo. Naquela altura tu tinhas medo de viver. Naquela altura tu eras fraco.
Hoje escrevo-te do fundo da minha enorme sala de estar. Quartos e quartos repetem-se vazios pelo corredor. As paredes estão forradas de estantes atoladas em livros, a música preenche o vazio a toda a volta. Hoje escrevo-te no lusco fusco deste dia que se cansa de viver, após a excruciante adrenalina laboral quotidiana, no centro da cefaleia que nem com uma boa noite de sono passará. Hoje escrevo-te do futuro para te dizer que foste burro. Escolheste o fácil caminho da solidão e egoisticamente tentaste acreditar que seria a decisão mais benévola para todos, como se omnisciente e altruísta fosses. Fingiste para ti mesmo que querias resolver os teus problemas internos, que o problema estava em ti, que precisavas de tempo. Mas de que servem as respostas que com palavras se dão quando a realidade da nossa vida não as reflecte?
Tempo é o que hoje tens em demasia e te devora anos de vida. Construíste um futuro brilhante, concentraste em ti vastíssimo conhecimento bibliográfico, olhaste-te de todos os ângulos, mas de que te serve tanta matéria em bruto se não tens com quem a partilhar e assim aprofundar? Na verdade, tudo se aguenta, até mesmo a solidão, enquanto a nossa vida parece ter algum sentido. Assim, viveste todos estes anos em paz, com pena da pessoa perdida, mas confiante de que tomaras a decisão certa para ti e de que nunca te arrependerias. Assim te construíste um orgulhoso solitário, por vezes até um eremita. E no entanto eis que hoje te cruzas contigo mesmo e te encontras descrente e atormentado, sentado no fundo da tua sala vazia onde ecoam os risos estridentes e os olhares enamorados de outrora... Esse local onde a face dela é o cenário dos teus sonhos escondidos.

Saturday, September 11, 2010

O regresso a casa

Em tudo tão igual a mim. Muito além dos interesses comuns, muito além do mesmo tipo de humor, muito além das concepções de vida, das ideologias, das crenças, dos medos. Muito além do quotidiano da vontade de dormitar, do quotidiano do local onde se guarda a fruta, do quotidiano de ler antes de dormir. Muito além de tudo o que é vida comezinha, e bem assim vida real, em tudo és igual a mim, nos sonhos, nas vontades, nas alegrias desmesuradas, nas rotinas internas, na forma de pensar, na expressão do que se sente, na problematização do que se diz, nas indagações metafísicas, no espanto de viver. Em tudo iguais e compatíveis, aquele sentimento que traz um friozinho na barriga e faz pensar que é quase perfeito.
Em tudo nos compreendíamos, e assim nos complementávamos no que nos distinguia. O teu comodismo e o meu espírito aventureiro, a minha insegurança e a tua confiança, a tua timidez e a minha sociabilidade, a tua solidão e a minha partilha. A nossa dedicação.
Em tudo nos sentíamos tão próximos que o coração apertava criando um lugar só nosso. Lembro que às vezes aprendia a gostar do silêncio, porque nesse lugar, mesmo que contigo fisicamente ausente, nunca me sentia só. Estavas dentro de mim.
Não precisava de ti para acordar, para adormecer, para trabalhar, para me divertir. Não precisava de ti para pensar, para criar, para sorrir. Não precisava de ti, como tu não precisavas de mim. Não precisávamos um do outro porque nos tínhamos. Amar traz-nos a liberdade de encontrar um refúgio ao fim do dia, viver a azáfama do dia sabendo que um espaço mais íntimo nos espera quando terminar o rodopio quotidiano da vida que construímos para nós. Não precisava de ti, porque te amava, e só se ama plenamente quando se é livre.
Hoje continuo a correr desenfreadamente para completar tarefas, cumprir prazos, melhorar-me. Hoje continuo a sorrir, a pensar, a sentir. Hoje, tudo igual, mas tu não estás mais nesse lugar que criei em mim para te acolher. Hoje não sei o que é feito de ti. Muito além das rotinas que certamente mantens, tão semelhantes às minhas, muito além dos livros que lês, das músicas que ouves, dos dias que te passam pelos dedos todos iguais, como os meus, repetidos até à exaustão da vida que escolhi para mim. Muito além desse mundo externo a que nos entregamos existe um eu que não mais te encontra ao regressar a casa, e longamente se deita entre teus braços como quem sonha o onirismo que vive. Muito além do turbilhão dos dias que correm devagar havia um quarto de felicidade que trazia o teu sorriso ao meu olhar, havia um segundo gelado no tempo, uma brisa mais suave, um reencontro com a alma primeira que me fez ser quem sou. Muito além desta vida existia um nós. Hoje há o vazio que em mim deixaste e que cozo lentamente por dentro. O teu lugar em mim permanece intacto, fechando-se lentamente para não me magoar. O teu mundo que em mim florescia estagna... Nada o preenche ou preencherá, és tu no que me foste. És tu em mim.
Hoje quando voltar para casa vou fechar a porta do quarto atrás de mim. Quero deitar-me dentro de mim e acreditar que amanhã um novo mundo se espreguiçará diante de um novo coração.

Night wanderings

Noite,

Em ti vivo, em ti sou, em mim ficas e me fazes renascer ao fim de cada excruciante dia. Parar, repensar tudo, as voltas que uma pessoa dá à cabeça para superar a pressão, para se contrariar a si mesma, por vezes só para não pensar. És tu, noite, quem melhor me conhece. Beijo-te o chão da lua que te pinta, e sinto-te presente nesta imensa solidão. Gosto de te ver passar, gosto de pensar que ficas. Noite, que me escondes de tudo o que em mim tenho medo. Noite, em que não consigo dormir. Noite, companheira das revoltas, das tristezas, das ansiedades e das pequenas alegrias. Noite, de assobios inusitados de animais que não existem; noite de sonhos misturados com realidade; noite de silêncios que confortam e fazem esquecer o dia; noite de esperança que amanhã seja melhor. Um dia.

Sonata

Arde, o calor dos passos que não vejo, as palavras ecoando em tudo o que não disse, o rumor de um regresso que não vem.

Arde, e queima, chagas abertas, feridas que não sei sarar.

Arde, como uma espécie de fim adiado, palavra encravada na garganta, lágrima que insiste em não mais cair.

Arde, ao escrever-te cartas de um amor suspenso, cartas de um amor que tenho medo que se esvaia.

Haverá amor que subsista na ausência de partilha? Haverá amor que não morra em pé, árvore centenária de memórias que ficam, quando se deixa em suspenso, uma história por viver?

Tempo. Uma cara que perde as raízes dentro de nós. Tempo. Uma lembrança que faz sorrir. Tempo. Nada mais a dizer a quem nos via por dentro. Tempo. Aprender a deixar que as velas ardam em nós até ao fim.

Sunday, September 05, 2010

Avante

Por um breve momento todos sorriem, e saltam, abraçam-se mesmo que não se conheçam, dançam em comunhão. Por um momento, a duração de uma melodia, todos se unem e se tornam um só. Uma força. Uma causa. Uma vida. Talvez seja fugaz, e para muitos mera aparência, mas sei que por pouco mais de um minuto todos se gostam, todos se conhecem, todos se são.
A humanidade tem destes encantos, unir-se por segundos por um objectivo comum, matar-se em seguida por mais um qualquer naco de pão. A humanidade, o Homem, que amo e desprezo em simultâneo, que odeio de tanto O amar e de tanto me desiludir, é um bicho estranho de entranhada hipocrisia. Mas que hoje dança, e canta, pela sua salvação comunitária.
Nesse minuto de união (pelo menos nesse) creio que a fraternidade existe, que cremos todos que a igualdade de oportunidades é uma meta a alcançar, que impera exigir justiça, que todos os homens e mulheres nascem iguais perante quem quer que queiramos (ou não) criar para nos guiar. Nesse segundo de epifania sei que todos os corpos em movimento se sentem parte de um todo global, esse todo que é a raça humana, integrada num ecossistema a respeitar e proteger.
E é entre esta algazarra de emoções revolucionárias, no centro destes sonhos fervilhando em ideias de mudança, que me sinto mais viva, que me reencontro comigo mesma e descubro o que me quero tornar: alguém que não esquece este momento, antes o vive quotidianamente, tornando o sonho real.
Avançar, é nisso que acredito. Nunca desistir, eis o meu lema. E portanto aplico esta máxima a todos os quadrantes da minha vida. Lutar, é tudo o que sei fazer, é a força a que aprendi a agarrar-me, o motor do meu devir, a minha reacção instintiva, o meu mojo. Lutar, por uma causa, por um ideal, por um objectivo, por uma ideia de justiça, por um direito, por um amor.
Avançar, acreditar em mim, acreditar no mundo, acreditar que a mudança será por nós construída. Avançar, seguir com a minha vida, nunca desistir. Avançar, lutar por tudo aquilo em que acredito. Avançar, e dar-me por inteiro ao mundo que me formo. Avançar, acreditando que é possível. Avançar, e nunca mais olhar para trás, que o passado é uma parte do que somos, querida, sempre presente na memória, mas não o nosso caminho. Avançar, e acreditar que ainda é possível construir um novo caminho com partes inacabadas do passado.
Ao meu lado casais trocam palavras de amor... Não brota em mim qualquer resquício de inveja. Mesmo que estejas ausente, mesmo que para junto de mim não retornes, por ti nutro amor de sobra. Amor em mim transpira. Amor em mim respira. Amor, estás dentro de mim.

Wednesday, September 01, 2010

As noites

Hoje acordei contigo deitado ao meu lado. Era um corpo mais pequeno e mais moreno, mas sei que eras tu. Ouvia a gargalhada da tua voz, sentia a tua mão acariciando a minha, e sentia que estava tudo bem. Tenho a certeza que eras tu porque as memórias invadiram-me e ficaram como num sonho, e nem os raios de sol esquartejadores de persianas te afastavam de mim. Entre a realidade e o sonho que a moleza traz, vi-te entrando nu pelo quarto e correr para me fazer cocegas proferindo barbaridades humorísticas em tom de puto. Tenho a certeza que vieste, porque aperto os lençóis e o teu cheiro ainda lá está.
Esta noite sei que não quiseste mais desistir, e abandonada não fui por causa de um avassalador medo de lutar que te apoquenta. Esta noite sei que acordei para uma manhã em que a nossa história não cessava, ainda tão boa como sempre foi, não se abdicando de nada, aceitando ser feliz. Esta noite sonhei que voltavas porque já sabias pedir ajuda e entender que não é fugindo do que nos faz bem que encontramos paz interior. Esta noite sonhei que um amanhã para nós existia, e que a completude que em ti encontrei (como em ninguém anteriormente) viveria para sempre dentro de mim, dentro de ti, nesse nós abraçado até ao raiar de um novo dia, esse nós que persiste na vontade de reconstruir os eus internos não afastando um nós quase perfeito.
Esta noite...eu sei, foi só um sonho, daqueles que queremos muito que fiquem, que se tornem reais, daqueles que nos fazem não querer acordar de manhã. Esta noite, bem sei, foi mera lembrança de um ontem ainda tão presente, que vive em mim sem esmorecer. Esta noite, o corpo ao meu lado era só uma amiga que me conforta neste luto que não quero fazer, porque não sei como desistir de algo tão bom. Era um corpo delicado, feminino, sem erotismo, sem argumentações acesas até às tantas da manhã, sem beijos sedentos de desejo, sem carinhos enamorados e conversas intermináveis de quem gosta do mesmo e sabe ler-se por dentro.
Esta noite, um sonho que deixo suspenso. Amanhã o novo dia em que tenho de me reencontrar nesse mundo voraz que não pára de girar. E sei que vou conseguir, e quem sabe um dia encontrar-te de novo, numa renovada noite já real.