Tuesday, June 30, 2009
Sunday, June 28, 2009
não dizer
Quanto custa dizer adeus? Uma conversa acaba, porque um silêncio o cria, porque um contratempo o traz, porque uma emoção o precipita, um adeus é dito, um brilho no olhar, um sorriso, um até logo. Quanto custa dizer "até logo", "até breve", "beijinhos"? Quanto custa passar de "beijo" para "beijinhos" para "adeus"? Um beijo longo e depois já só acenar, do outro lado da rua, olá, talvez, quem sabe nem isso. Uma palavra que custa a sair, que saltita insegura garganta acima e depois se enrola de novo para trás na língua. Quanto custa dizer "eu amo-te"? Quanto custa dizer "eu já não te amo"? E quando lê-lo num outro rosto? Por vezes a diferença não é nítida. Por vezes, de tão confuso, não há diferença.
Erra-se vezes sem conta. Explode-se vezes sem conta. Teme-se vezes sem conta. Sofre-se vezes sem conta. No final o que nos fica só a dor de um adeus que não se disse, e a lembrança de um sorriso rasgado de outrora.
Erra-se vezes sem conta. Explode-se vezes sem conta. Teme-se vezes sem conta. Sofre-se vezes sem conta. No final o que nos fica só a dor de um adeus que não se disse, e a lembrança de um sorriso rasgado de outrora.
Tuesday, June 23, 2009
Saudade
O passo mecânico, a alma estática, caminhava sem andar por entre as sombras do corredor quase cega. Caminhava, sem saber para onde ia. Não ia, ficava. Ficava no mesmo local de onde nunca saiu. Queria gritar, queria chorar, queria odiar, queria esquecer, mas nada além de um tumultuoso vazio fervilhando e o corpo numa rigidez apática.
Quantos dias passaram? Quantas horas? Quanto tempo mais sem ver além do longo corredor de memórias? Todas as lembranças que a fazem sorrir e chorar por não mais serem presente. As lembranças e as palavras que martelam, martelam, marcham em Exércitos de fim. E as culpas e as inseguranças e as dores que a invadem, irracionais, tão normais para quem não gosta de si mesmo. E se gostasse mais voltavas? E se... E nada que se possa fazer para que o passado renovado hoje seja. E acabou.
O amor é um punhado de corredores em labirinto, que passamos a vida a sonhar que se cruzem no final.
Quantos dias passaram? Quantas horas? Quanto tempo mais sem ver além do longo corredor de memórias? Todas as lembranças que a fazem sorrir e chorar por não mais serem presente. As lembranças e as palavras que martelam, martelam, marcham em Exércitos de fim. E as culpas e as inseguranças e as dores que a invadem, irracionais, tão normais para quem não gosta de si mesmo. E se gostasse mais voltavas? E se... E nada que se possa fazer para que o passado renovado hoje seja. E acabou.
O amor é um punhado de corredores em labirinto, que passamos a vida a sonhar que se cruzem no final.
Sunday, June 14, 2009
Polaroid
Se hoje me apetecer escrever algo feliz ainda saberei fazê-lo? Acho que nos escorre mais nas veias a tinta do que fere, precisa sair, expelir, explodir em mil direcções e jorrar até esvaziar o pus que dentro cresce e putrefica. O que é feliz vive-se, sente-se, inspira-se, é-se. E escrever é fingir, é pegar no que em nós fervilha e torná-lo outra vida, outra estória, outro mundo.
Se hoje me apetecer ser feliz subo ao telhado, rasgo as meias ao trepar, levo vinho comigo, sento-me a fitar o céu e a cidade que à minha volta frenética se move e eu tão calma... Bebo, canto, olho longamente, danço até e rio. Rio contigo que estás em mim, que és aqui, parte de tudo o que sou. Guardo-te num vestígio polaroid do fim de tarde, e revejo o brilho dos olhos nas cores que nascem de uma mancha cinzenta. Posso contar-te um segredo? Gosto muito de ti. Acho que já o sabias.
Se hoje me apetecer ser feliz lembro-me que ainda há um firmamento que nos cobre, telhados que nos unem, uma polaroid que nos perpétua, e amor não erotizado que é a amizade. Único amor que não se desfaz na intensidade de existir. É de sempre. É para sempre. É com um olhar apenas saber já tudo o que não se diz.
Se hoje me apetecer ser feliz subo ao telhado, rasgo as meias ao trepar, levo vinho comigo, sento-me a fitar o céu e a cidade que à minha volta frenética se move e eu tão calma... Bebo, canto, olho longamente, danço até e rio. Rio contigo que estás em mim, que és aqui, parte de tudo o que sou. Guardo-te num vestígio polaroid do fim de tarde, e revejo o brilho dos olhos nas cores que nascem de uma mancha cinzenta. Posso contar-te um segredo? Gosto muito de ti. Acho que já o sabias.
Se hoje me apetecer ser feliz lembro-me que ainda há um firmamento que nos cobre, telhados que nos unem, uma polaroid que nos perpétua, e amor não erotizado que é a amizade. Único amor que não se desfaz na intensidade de existir. É de sempre. É para sempre. É com um olhar apenas saber já tudo o que não se diz.
Tuesday, June 09, 2009
um vazio em vez de um nome
Laura sabia que não tinha importância. Não importava que as flores murchassem, não importava que se deixasse comida no prato, não importava que a cama ficasse um pouco amarrotada, a louça do pequeno almoço para lavar ao almoço, a roupa por passar mais uma noite. Laura sabia que o mundo não acabava se deixasse o último capítulo da matéria para amanhã, que se esquecesse a data do nascimento do filho não primogénito do rei, desde que soubesse o reinado, não veria o seu percurso escolar terminado. Contudo, para Laura a rotina era vital. Acordar às 9 horas, pequeno almoço para si e para a irmã e a amiga da irmã e os namorados de ambas mais o amigo que foi ficando no sofá, tomar um duche, a maquilhagem (não vive sem ela), a blusa "decente", escovar o cabelo, lavar os dentes, comida na tigela dos gatos, lavar a loiça, sair, sete voltas à fechadura, bater duas vezes com o pé no último degrau da escada, primeiro o esquerdo, depois o direito, sempre ambos para que nenhum fique descompensado, comprar o jornal num bom dia ao senhor Gracindo, apanhar o autocarro, o 35, às 13h40, 14 horas em ponto no emprego, pausa às 17 horas e só a essa hora, café, meio pacote de açúcar, duas voltas com a colher, tragar de um golo, 19 horas correr para apanhar o 31, quatro horas de Faculdade, casa, mudar de autocarro duas vezes, sete voltas à fechadura, cinco vezes esfregando os pés no capacho e fazer o jantar, só peixe ou salada, para todos, lavar a cozinha, lavar a casa de banho, um banho, besuntar o corpo em cremes, estudar um capítulo de cada disciplina, rezar ajoelhada junto à cama, dormir.
Tudo mudava às terças e quintas, tudo por causa do ginásio pela manhã: aula de taichi, aula de fitness, aula de pilates, aula de interior cycling. Longo banho de balneário, almoçar na cantina, estudar na biblioteca, às vezes visitar as exposições da Gulbenkian, só para ver como se vestem bem as pessoas que frequentam aquele espaço, não comprava roupa mas seguia os últimos gritos da moda, imitava os modelos que vê pelas ruas e revistas nas suas vestimentas, fá-las ela mesma nas pausas de domingo à tarde quando não vai à terra. Vai cada vez menos.
Se a convidassem para sair à noite não ia, a menos que fosse sábado, e as poucas vezes que tentou foram mal sucedidas. Não se sentia bem onde todos bebiam, onde se falava quase gritando por cima das camadas de música que fura tímpanos, onde todos pareciam saber de tudo um pouco e essencialmente do que se passa nas vidas de todos e de cada um. Laura não tinha nada de interessante para dizer. Passava o dia a pensar na tarefa seguinte, nunca foi dada a devaneios intelectuais, nunca gostou de dançar, nunca se preocupou muito com o que se vai passando no mundo, não viaja, não sabe nada das músicas que passam na rádio, não conhece ninguém que não esteja nos locais por onde passa e normalmente desses só sabe os nomes. Ás vezes esquece-se que há gente à volta, que deve dizer bom dia, que deve perguntar como correu a operação da colega de trabalho, dar os parabéns pelo casamento do colega de turma. Parece-lhe cínico ser cordial num pretenso interesse que é mero quebrar de silêncio. Não suporta o silêncio, mas prefere quebrá-lo trabalhando como que em linha de montagem, sem contacto com outros, sem tempo para reflectir o que se diz ou pensar durante os inevitáveis silêncios entre falas num diálogo.
Um dia Laura tropeçou das escadas ao trocar os pés (acidentalmente esquecera-se de começar a descer as escadas com o pé esquerdo), rolou escada abaixo, não morreu por mera casualidade, um mês de hospital e seis outros na cama em casa, causa? bacia partida. Diziam que a recuperação era lenta. Diziam que podia mesmo deixar de andar. E nada disso lhe importava, só como tratar agora da pilha de roupa para passar, correr para apanhar o autocarro, trabalhar, chegar a casa e só parar para dormir, não ter de pensar, nunca parar.
Laura tentou ler, tentou ver TV, tentou pintar, ver os filmes que a irmã vai comprando, tudo a deixava suficientemente desconcentrada para o pânico. Preferia quando tinha dores, não tinha tempo para pensar.
Além disso não suportava a dependência que agora tinha de quem sempre fora ela a cuidar. Para se sentar, para comer, para se lavar, para ir à casa de banho. Um parasita, assim se sentia, um estorvo com demasiado tempo para lembrar. Ás vezes acordava toda a casa com pesadelos durante a noite, por vezes todo o prédio.
Os dias favoritos eram os da fisioterapia, terças e quintas, curiosamente, pois exigia-se progressos semanais, exigia aperfeiçoamento, concentrava-se, não pensava, era uma meta a alcançar, algo certo, algo que podia controlar de alguma forma, nunca desistia. Nunca ninguém a viu chorar desde que ficara naquele estado. Pedia sempre à irmã para lhe dar a maquilhagem de manhã e escolher uma boa camisola, nunca se sabe quando aparece uma visita. E raramente aparecia. Não tinha muitos amigos. Nunca ninguém a tinha visto derramar uma lágrima em alturas de crise, não quando a casa da infância se incendiou, não quando a mãe morreu, não quando teve de internar o pai numa clínica de reabilitação depois de muitas sovas, não quando mataram o seu cão que era quase um irmão, chorava por dentro, sim, mas enfrentava a vida. Havia ali uma certeza: para orgulho deles e bem-estar de sua irmã era preciso continuar. Havia uma meta e um ser externo a si que dela beneficiaria.
Laura não fora sempre tão rígida. Era metódica, era excessivamente determinada, uma vez disseram-lhe que tinha tendência para ser obsessiva-compulsiva, mas Laura ria, gostava de teatro, gostava de comer algodão doce nas feiras com a irmã, gostava de passear pela serra do Caramulo onde ficava a sua aldeia. Laura gostava de ouvir o chilrear dos pássaros, gostava do calor da lareira no Inverno, gostava das almoçaradas de família com muita alheira e vinho da casa, única bebida alcoólica que consumia, gostava do enterro do Judas na Páscoa.
Laura conhecia a paixão pelo que via na irmã. Toda aquela adrenalina fascinava-a e, secretamente, enquanto equacionava perante os pais talvez entrar para um convento, sonhava apaixonar-se.
Quando esse dia chegou nem se apercebeu. O nervosismo, a ansiedade de ver, o reparar em cada gesto, o admirar cada palavra, o colocar no pedestal de deus grego, o querer sempre estar, lembrar sempre, sentir a falta, tudo isso foi ficando sem que desse conta e de repente já era evidente para todos: Laura amava Rafael.
Diz-se que foram felizes uns tempos, que pensaram um dia viver juntos, que queriam uma vida a dois, que mais tarde gostariam de ter filhos, que iriam estudar juntos na cidade, que o seu amor era especial. Dizem que um dia Rafael saiu da casa onde viviam, no Porto, pegou no carro e nunca mais voltou. Nas férias por vezes cruzam-se na aldeia, mas é raro, quando lá vai Laura nunca sai de casa. Dizem que ele a traia, que os encantos boémios da Invicta despertaram os desejos libertinos da juventude. Dizem que Laura foi internada com um esgotamento nervoso e Rafael não quis saber, é maluquinha, disse. Dizem que pouco depois a deixou por uma briga qualquer sem sentido, um ciúme ou uma roupa que não se sabia onde estava. Dizem que durante um ano Laura andou à deriva, mal comia, mal dormia, chumbou na Faculdade, passava os dias junto ao rio, consta até que se embebedava. Escarrou para uma cruz de Cristo, dizem as más línguas, ninguém sabe se é verdade. Laura chorou como nunca ninguém a tinha visto chorar antes, frágil, desprotegida, como nunca por doença, por morte, por violência, só a falta de Rafael, a incompreensão quanto a Rafael, o sentimento de ter falhado, o que podia mudar? o que ainda podia mudar? posso mudar? voltas? Para no fundo saber que Rafael não vinha mais.
Até que um dia surgiu maquilhada e bem vestida, com um emprego e estudando de novo, uma rotina e uma expressão inalterável, sempre séria, sempre inexpressiva. Assim ficou até se entravar numa cama.
Parece que voltou a chorar. Parece que de noite grita por Rafael. Parece que se irrita com quem quer que a visite, porque nunca é ele, e, sabe-o, nunca será. Pragueja em blasfémias porque Deus a condicionou a matutar de novo, deu-lhe a dádiva do tempo que tão grandemente dispensava. Há quem diga que Laura morreu já há muito tempo, a Laurinha tímida que gostava das revistas de moda, que calçava os sapatos altos da mãe em casa, mas tinha vergonha se alguém chegasse e punha logo a cabeça para baixo em sinal de pudor, a Laura que sorria já não existia naquele corpo... Só, talvez, nas margens do Douro que acompanhavam a sua angústia, nas águas que um dia quiseram abraçá-la. Quando morrer Laura quer ser deitada ao mar onde tal for permitido, disse outro dia. Conta as horas minuto a minuto para a fisioterapia, quer treinar a toda a hora, mas os dias são enormes... O desespero assola-a cada vez mais velozmente. Diz que um dia desiste. Diz que um dia se mata. Diz que um dia não se lembra mais das metas, só da dor que dentro sente, que a do corpo não apaga, e foge para o mar que prolonga o rio de que é feita. O rio que guarda esse amor maior em si que no real.
Tudo mudava às terças e quintas, tudo por causa do ginásio pela manhã: aula de taichi, aula de fitness, aula de pilates, aula de interior cycling. Longo banho de balneário, almoçar na cantina, estudar na biblioteca, às vezes visitar as exposições da Gulbenkian, só para ver como se vestem bem as pessoas que frequentam aquele espaço, não comprava roupa mas seguia os últimos gritos da moda, imitava os modelos que vê pelas ruas e revistas nas suas vestimentas, fá-las ela mesma nas pausas de domingo à tarde quando não vai à terra. Vai cada vez menos.
Se a convidassem para sair à noite não ia, a menos que fosse sábado, e as poucas vezes que tentou foram mal sucedidas. Não se sentia bem onde todos bebiam, onde se falava quase gritando por cima das camadas de música que fura tímpanos, onde todos pareciam saber de tudo um pouco e essencialmente do que se passa nas vidas de todos e de cada um. Laura não tinha nada de interessante para dizer. Passava o dia a pensar na tarefa seguinte, nunca foi dada a devaneios intelectuais, nunca gostou de dançar, nunca se preocupou muito com o que se vai passando no mundo, não viaja, não sabe nada das músicas que passam na rádio, não conhece ninguém que não esteja nos locais por onde passa e normalmente desses só sabe os nomes. Ás vezes esquece-se que há gente à volta, que deve dizer bom dia, que deve perguntar como correu a operação da colega de trabalho, dar os parabéns pelo casamento do colega de turma. Parece-lhe cínico ser cordial num pretenso interesse que é mero quebrar de silêncio. Não suporta o silêncio, mas prefere quebrá-lo trabalhando como que em linha de montagem, sem contacto com outros, sem tempo para reflectir o que se diz ou pensar durante os inevitáveis silêncios entre falas num diálogo.
Um dia Laura tropeçou das escadas ao trocar os pés (acidentalmente esquecera-se de começar a descer as escadas com o pé esquerdo), rolou escada abaixo, não morreu por mera casualidade, um mês de hospital e seis outros na cama em casa, causa? bacia partida. Diziam que a recuperação era lenta. Diziam que podia mesmo deixar de andar. E nada disso lhe importava, só como tratar agora da pilha de roupa para passar, correr para apanhar o autocarro, trabalhar, chegar a casa e só parar para dormir, não ter de pensar, nunca parar.
Laura tentou ler, tentou ver TV, tentou pintar, ver os filmes que a irmã vai comprando, tudo a deixava suficientemente desconcentrada para o pânico. Preferia quando tinha dores, não tinha tempo para pensar.
Além disso não suportava a dependência que agora tinha de quem sempre fora ela a cuidar. Para se sentar, para comer, para se lavar, para ir à casa de banho. Um parasita, assim se sentia, um estorvo com demasiado tempo para lembrar. Ás vezes acordava toda a casa com pesadelos durante a noite, por vezes todo o prédio.
Os dias favoritos eram os da fisioterapia, terças e quintas, curiosamente, pois exigia-se progressos semanais, exigia aperfeiçoamento, concentrava-se, não pensava, era uma meta a alcançar, algo certo, algo que podia controlar de alguma forma, nunca desistia. Nunca ninguém a viu chorar desde que ficara naquele estado. Pedia sempre à irmã para lhe dar a maquilhagem de manhã e escolher uma boa camisola, nunca se sabe quando aparece uma visita. E raramente aparecia. Não tinha muitos amigos. Nunca ninguém a tinha visto derramar uma lágrima em alturas de crise, não quando a casa da infância se incendiou, não quando a mãe morreu, não quando teve de internar o pai numa clínica de reabilitação depois de muitas sovas, não quando mataram o seu cão que era quase um irmão, chorava por dentro, sim, mas enfrentava a vida. Havia ali uma certeza: para orgulho deles e bem-estar de sua irmã era preciso continuar. Havia uma meta e um ser externo a si que dela beneficiaria.
Laura não fora sempre tão rígida. Era metódica, era excessivamente determinada, uma vez disseram-lhe que tinha tendência para ser obsessiva-compulsiva, mas Laura ria, gostava de teatro, gostava de comer algodão doce nas feiras com a irmã, gostava de passear pela serra do Caramulo onde ficava a sua aldeia. Laura gostava de ouvir o chilrear dos pássaros, gostava do calor da lareira no Inverno, gostava das almoçaradas de família com muita alheira e vinho da casa, única bebida alcoólica que consumia, gostava do enterro do Judas na Páscoa.
Laura conhecia a paixão pelo que via na irmã. Toda aquela adrenalina fascinava-a e, secretamente, enquanto equacionava perante os pais talvez entrar para um convento, sonhava apaixonar-se.
Quando esse dia chegou nem se apercebeu. O nervosismo, a ansiedade de ver, o reparar em cada gesto, o admirar cada palavra, o colocar no pedestal de deus grego, o querer sempre estar, lembrar sempre, sentir a falta, tudo isso foi ficando sem que desse conta e de repente já era evidente para todos: Laura amava Rafael.
Diz-se que foram felizes uns tempos, que pensaram um dia viver juntos, que queriam uma vida a dois, que mais tarde gostariam de ter filhos, que iriam estudar juntos na cidade, que o seu amor era especial. Dizem que um dia Rafael saiu da casa onde viviam, no Porto, pegou no carro e nunca mais voltou. Nas férias por vezes cruzam-se na aldeia, mas é raro, quando lá vai Laura nunca sai de casa. Dizem que ele a traia, que os encantos boémios da Invicta despertaram os desejos libertinos da juventude. Dizem que Laura foi internada com um esgotamento nervoso e Rafael não quis saber, é maluquinha, disse. Dizem que pouco depois a deixou por uma briga qualquer sem sentido, um ciúme ou uma roupa que não se sabia onde estava. Dizem que durante um ano Laura andou à deriva, mal comia, mal dormia, chumbou na Faculdade, passava os dias junto ao rio, consta até que se embebedava. Escarrou para uma cruz de Cristo, dizem as más línguas, ninguém sabe se é verdade. Laura chorou como nunca ninguém a tinha visto chorar antes, frágil, desprotegida, como nunca por doença, por morte, por violência, só a falta de Rafael, a incompreensão quanto a Rafael, o sentimento de ter falhado, o que podia mudar? o que ainda podia mudar? posso mudar? voltas? Para no fundo saber que Rafael não vinha mais.
Até que um dia surgiu maquilhada e bem vestida, com um emprego e estudando de novo, uma rotina e uma expressão inalterável, sempre séria, sempre inexpressiva. Assim ficou até se entravar numa cama.
Parece que voltou a chorar. Parece que de noite grita por Rafael. Parece que se irrita com quem quer que a visite, porque nunca é ele, e, sabe-o, nunca será. Pragueja em blasfémias porque Deus a condicionou a matutar de novo, deu-lhe a dádiva do tempo que tão grandemente dispensava. Há quem diga que Laura morreu já há muito tempo, a Laurinha tímida que gostava das revistas de moda, que calçava os sapatos altos da mãe em casa, mas tinha vergonha se alguém chegasse e punha logo a cabeça para baixo em sinal de pudor, a Laura que sorria já não existia naquele corpo... Só, talvez, nas margens do Douro que acompanhavam a sua angústia, nas águas que um dia quiseram abraçá-la. Quando morrer Laura quer ser deitada ao mar onde tal for permitido, disse outro dia. Conta as horas minuto a minuto para a fisioterapia, quer treinar a toda a hora, mas os dias são enormes... O desespero assola-a cada vez mais velozmente. Diz que um dia desiste. Diz que um dia se mata. Diz que um dia não se lembra mais das metas, só da dor que dentro sente, que a do corpo não apaga, e foge para o mar que prolonga o rio de que é feita. O rio que guarda esse amor maior em si que no real.