José Reis, Rua do Garrido, dois filhos
- A minha casa é já ali - disse ele, enquanto girava sobre si à procura de uma forma de me fugir. Nunca nenhuma servia, nem aquelas onde podia escapar, porque não sabia bem se eu afinal lá não estaria.
- A minha casa é já ali, gosto de andar sozinho.
- Onde exactamente? Olhe que é tarde e já não devia andar sozinho. Com quem mora?
- A minha mulher. A minha mulher deve estar a minha espera. Tenho de ir, filha.
- Eu vou consigo. Mas vem de onde?
- Não é preciso, é já aqui, eu faço este caminho todos os dias. Venho do hospital.
- Mas está doente?
- É a minha mulher.
- A sua mulher está no hospital?
- Sim. Eu tenho de ir para casa. Não estava bem a ver onde era mas já me orientei. Tenho de ir, filha.
E de novo às voltas sobre si, sem saber que passo dar, esquerda ou direita?, para seguir em frente. Tinha um saco de plástico na mão encarquilhada. Cheirava a um Old Spice fabricado em casa, daqueles que já só os velhos sapateiros ou donos de drogarias têm, daqueles que o meu avô usava. Todos os avôs usavam e na memória usarão.
- Eu tenho de ir.
E espere lá, para onde vai, que eu cá acho que não sabe, que eu cá acho que vai para sítio nenhum, que eu cá acho que aqui e ali é a mesma rua, que eu cá acho que daqui a uns minutos já não se lembra, Rua do Garrido, e qual é o número? e vive sozinho?, e não que tenho de ir, tenho dois filhos, dois filhos que estão longe, um emigrado, talvez, dois filhos que será que querem saber do pai? E terá netos? Dois filhos que de certeza com o pai não vivem. E a mulher, se calhar até já falecida, há-de ter estado no hospital, de onde não sei se veio, mas dizem que o Sr passa muitas vezes por aqui. Se dissesse adeus a quem passa eu diria que se sente sozinho. Se esperasse à porta do hospital di-lo-ia traumatizado.
- Tenho de ir para casa. É na Rua do Garrido. Já sei onde é que fica. Despistei-me só um bocadinho.
Que ainda está bom da cabeça, eu sei. Que ainda sabe que estamos em 1989. Ano da queda do muro de Berlim, sabia? Já não me lembro...Quando é que isso foi? O ano passado talvez, não é? Gosto de si, sabia? Se pudesse levá-lo a casa para junto da sua mulher ou dos seus filhos. Se me deixasse. Se não quisesse fugir porque consegue sozinho. Se lhe perguntar o seu nome ainda o sabe? José. José quê? José. Mas tem um apelido certamente! José...Reis. Sr José Reis da Rua do Garrido, com dois filhos, uma esposa espectante em casa e doente no hospital, com uma camisa em xadrez verde e vermelha, como a do meu avô, só que a do meu avô em tons de castanho.
Sr. José Reis, espero que um dia o veja novamente, para lhe dizer que caminho seguir, para que possa falar um bocadinho, para que se lembre de como se chama, para depois perguntar como chegar à Rua do Garrido no dia seguinte, esperando que nunca chegue o dia em que se perca para sempre.
- A minha casa é já ali, gosto de andar sozinho.
- Onde exactamente? Olhe que é tarde e já não devia andar sozinho. Com quem mora?
- A minha mulher. A minha mulher deve estar a minha espera. Tenho de ir, filha.
- Eu vou consigo. Mas vem de onde?
- Não é preciso, é já aqui, eu faço este caminho todos os dias. Venho do hospital.
- Mas está doente?
- É a minha mulher.
- A sua mulher está no hospital?
- Sim. Eu tenho de ir para casa. Não estava bem a ver onde era mas já me orientei. Tenho de ir, filha.
E de novo às voltas sobre si, sem saber que passo dar, esquerda ou direita?, para seguir em frente. Tinha um saco de plástico na mão encarquilhada. Cheirava a um Old Spice fabricado em casa, daqueles que já só os velhos sapateiros ou donos de drogarias têm, daqueles que o meu avô usava. Todos os avôs usavam e na memória usarão.
- Eu tenho de ir.
E espere lá, para onde vai, que eu cá acho que não sabe, que eu cá acho que vai para sítio nenhum, que eu cá acho que aqui e ali é a mesma rua, que eu cá acho que daqui a uns minutos já não se lembra, Rua do Garrido, e qual é o número? e vive sozinho?, e não que tenho de ir, tenho dois filhos, dois filhos que estão longe, um emigrado, talvez, dois filhos que será que querem saber do pai? E terá netos? Dois filhos que de certeza com o pai não vivem. E a mulher, se calhar até já falecida, há-de ter estado no hospital, de onde não sei se veio, mas dizem que o Sr passa muitas vezes por aqui. Se dissesse adeus a quem passa eu diria que se sente sozinho. Se esperasse à porta do hospital di-lo-ia traumatizado.
- Tenho de ir para casa. É na Rua do Garrido. Já sei onde é que fica. Despistei-me só um bocadinho.
Que ainda está bom da cabeça, eu sei. Que ainda sabe que estamos em 1989. Ano da queda do muro de Berlim, sabia? Já não me lembro...Quando é que isso foi? O ano passado talvez, não é? Gosto de si, sabia? Se pudesse levá-lo a casa para junto da sua mulher ou dos seus filhos. Se me deixasse. Se não quisesse fugir porque consegue sozinho. Se lhe perguntar o seu nome ainda o sabe? José. José quê? José. Mas tem um apelido certamente! José...Reis. Sr José Reis da Rua do Garrido, com dois filhos, uma esposa espectante em casa e doente no hospital, com uma camisa em xadrez verde e vermelha, como a do meu avô, só que a do meu avô em tons de castanho.
Sr. José Reis, espero que um dia o veja novamente, para lhe dizer que caminho seguir, para que possa falar um bocadinho, para que se lembre de como se chama, para depois perguntar como chegar à Rua do Garrido no dia seguinte, esperando que nunca chegue o dia em que se perca para sempre.